EU E A NATUREZA I (Projeto Minhas Histórias)

EU E A NATUREZA I

A minha ligação com a natureza remonta à época da minha infância. Talvez o fato de ter vivido até os 9 anos na região rural tenha influenciado bastante, sem contar que mesmo estudando na cidade, não perdia a oportunidade de retornar a Ventura nos períodos de férias escolares, que nessa época iam de meados de novembro a final de fevereiro. As aulas iniciavam nos primeiros dias de março. Às vésperas do São João entravamos no período de recesso junino que acabava no final de julho. Tínhamos realmente muita folga, mas podem apostar que aprendíamos muito mais. E era exatamente nesses períodos de férias que eu me entregava às aventuras no campo.

A maioria das crianças e jovens não têm idéia de como é maravilhoso interagir com a natureza. Muitos desconhecem a origem dos alimentos que encontram prontinhos, manufaturados nos supermercados da vida. Eu me orgulho de poder contar pro meu filho e para os meus sobrinhos que colhi o grão do café, que vi ser secado ao sol, ser torrado, (que delícia!), e a seguir, ser “socado” num pilão de madeira e depois peneirado até se transformar no pó que era consumido, puro, sem misturas, num coador de tecido, que recebia a água fervente da velha chaleira de ferro, aquecida no fogão de lenha.

Conheci as plantações de arroz e a colheita manual. A mandioca sendo arrancada e transformada em farinha e “beiju”. A espera da mandioca mergulhada na água se transformar em “puba” para comermos um delicioso bolo ou um saboroso mingau. A araruta, que fez parte da minha alimentação nos primeiros anos de vida, o amendoim ser colhido da terra, o milho que todas as manhãs se transformava em delicioso cuzcuz e tantos outros milagres da natureza.

Hoje, encontramos tudo nas prateleiras. Ventura era um lugarejo afastado e não tínhamos acesso a modernidades. Chocolate? Só conhecia de nome. Meus pais, que já tinham morado em grandes centros falavam como era gostoso e como meu Vô era “alquimista” nato, fabricava em casa o melhor chocolate do mundo e ainda nos explicava como fazia. Levava tempo porque precisava secar bem a semente do cacau que o ajudávamos a colher no quintal, que na verdade era um sítio. Podíamos escolher amargo ou adoçado. Bebíamos com leite de vaca genuíno, ordenhado no curral pertinho de casa.

Ainda no famoso quintal de Vovô Zico, podíamos colher outras frutas deliciosas, como lima, laranja, romã, amora, mamão, abacaxi, manga, coco, jenipapo, goiaba, araçá, caju e outros. Bem ao lado da casa, havia uma parreira enorme, que sob muitos cuidados, nos dava cachos de uvas, bem pouco doces.

O jenipapo tinha mil e uma utilidades. Fazia-se doce cristalizado, balas, suco, jenipapada (a fruta cortada em pedacinhos bem pequenos com água e açúcar) e o principal produto, marca registrada do Vô - o Ziquinho. Ah! O ziquinho! Pessoas vinham de longe para conhecer essa especialidade. Era um licor que tinha como base o jenipapo, acrescido de algo mais que o deixava delicioso e diferente. Infelizmente, quando o nosso “alquimista” partiu, levou consigo a fórmula mágica.

Além da cerca do quintal de vovô passava um rio – o rio Subaúma e era lá que nos divertíamos nos dias quentes. Tomávamos um minúsculo cálice de ziquinho e atravessávamos correndo todo o quintal para finalmente cair na água. Aprendi a nadar. Modalidade: nado cachorrinho. Puxava a água com as duas mãos como se estivesse cavando e batia os pés numa sequência cadenciada. Meu irmão era muito bom nisso! Deixávamos o rio, sob protestos, para atender os apelos de papai que nos convocava para o almoço. Nem sentíamos fome. Às margens do rio cresciam enormes ingazeiras que nos brindavam com seus frutos.

Um detalhe: não usávamos roupas de banho tipo maiô, biquine. Era uma roupa velha que espremíamos no corpo ao sairmos da água e ainda chegávamos em casa ensopados.

E não parava por aí. Do lado oposto à casa de Vovô estava a nossa casa, que também tinha um quintal imenso que acabava num brejo e precisávamos atravessá-lo para chegar a um riacho maravilhoso. Água límpida e transparente corria sobre pedras enormes, onde eu passava horas a fio, sentada ouvindo o barulho das águas e da natureza, numa paz infinita, sempre muito bem acompanhada de um bom livro.

Como eu não dispensava uma boa aventura, cismei um belo dia de acompanhar um pessoal em sua pesca no famoso riacho e para isso a muito custo, convenci papai primeiro a dar permissão e depois mandar confeccionar um jereré* para que eu pudesse participar da atividade. Era uma festa! Entrar no riacho com água apenas cobrindo os pés e explorá-lo até a represa*, onde abríamos caminho no junco*, com água ao nível da cintura e quando saíamos as pernas estavam cheias de sanguessugas. Como eu era corajosa! Sequer dava ouvidos aos avisos: cuidado com as cobras! Cuidado com o jacaré! O que eu não fazia mesmo, por dinheiro algum era tirar o peixe ou os mariscos do jereré. Uma vez fiz um esforço e tentei tirar uma traíra*, não deu outra, ela acabou voltando pra água. Também do que pescava, só comia os camarões e volta à lembrança papai tentando me convencer a desistir dessas aventuras: “se você precisasse pescar pra comer, por certo não estaria querendo ir.” E ele tinha toda razão.

E assim eu me divertia e aproveitava muito bem as minhas férias junto à natureza, mas não pensem que as aventuras acabam aqui, essa é apenas a primeira parte. Aguardem!

Fátima Almeida

24/07/13

Notas:

Jereré – rede para pesca confeccionada com barbante em forma de cone, presa a um arco de madeira (em geral, um tipo de cipó) cujo diâmetro variava de acordo com o desejo de quem o usava.

Junco - Nome comum de um grupo de gramíneas que crescem, em geral, nos alagadiços. O junco verdadeiro constitui uma única família. Essas plantas possuem caules cilíndricos com três fileiras de folhas, e suas flores miúdas são esverdeadas ou castanhas. A pequena vagem contém muitas sementes escuras, que parecem poeira. O junco comum é uma planta verde-escura e flexível, que cresce com frequência nos caminhos úmidos e nos gramados. A maioria das outras espécies cresce nos alagados ou nas pradarias úmidas. Os juncos são utilizados para tecer cestos, esteiras e assentos de cadeira. Antigamente, usava-se a medula dos caules para fazer pavios de velas.

Traíra - Peixe de água doce da fam. dos eritrinídeos (Hoplias malabaricus), com dentes muito afiados.

Fátima Almeida
Enviado por Fátima Almeida em 06/08/2013
Código do texto: T4421916
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