Uma crônica que em abril passado fez três anos (e que a qualquer momento ou em edição extraordinárias pode voltar a ser atual).

Estarão todos delirando?
Há um poema lindo, lindíssimo, do Fernando Pessoa, por seu heterônimo Alberto Caeiro, em Ficções do Interlúdio (e, como temos todo o tempo do mundo, vou relembrá-lo):

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele”.

Muito bem. Negritei um verso – para aqueles que vêem em tudo o que lá não está – porque o que me fez recordar o poema foi um factóide político recente. Vocês sabem que estou falando da repercussão que teve a fala (infeliz, talvez) da Dilma, ex-guerrilheira, ex-ministra e candidata do Lula à sua sucessão.

Não faz muito tempo que era costume dizer-se a frase feita “o maior cego é o que não quer ver”. Parece que agora a mídia – claro que não é toda a mídia, mas uma parte dela – pretende reverter o adágio e ver demais, ver ‘o que lá não está’. Fiquei com a mais absoluta certeza de que nesse tipo de jornalismo é correto dizer-se “se o fato não favorece, imprima-se a versão”. É surpreendente como as versões tomaram o lugar dos fatos. Li e reli a transcrição do que a mulher falou e cheguei a esta decepcionante constatação: ela não disse nada daquilo que lhe foi atribuído, nada, rigorosamente nada. Em nenhum momento encontrei as palavras ‘exílio’, ‘exilado’, ‘ex-exilado’ e muito menos ‘fugitivo’ ou ‘fujão’, a não ser nas versões e textos apócrifos. Acho que não se pode permitir que a mentira, que põe a versão no lugar dos fatos, fique sem resposta. É preciso denunciar isso ou estaremos todos delirando! O bom senso nos deve impedir de fazer coro às teorias conspiratórias e persecutórias seja a bombordo ou a estibordo. Navegar é preciso (mas no sentido de precisão; não de suicídio por afogamento!).

Preciso confessar-lhes que não sou eleitor apaixonado da dona Dilma; acho a mulher um ‘porre’, acho até que ela consegue (e sem esforço) ser ainda mais antipática do que o Serra, seu adversário do PSDB, o que é uma proeza! Para ser bem sincero com vocês, entre tucanos e petistas só vejo diferenças semânticas. Os dois mandatos de FHC e os dois de Lula foram pautados pela mesma cartilha social democrata. Acredito que o Lula teve a sorte, a gigantesca sorte, de sentar-se na cadeira presidencial depois de FHC; encontrou o desenho pronto, os pressupostos macroeconômicos consolidados, a moeda estável. Não sei (e nem quero saber!) o que teria sido se FHC viesse depois do Lula. Mas é de se pensar; lembram que o PT era contra o real?

Pois é, para finalizar quero dizer-lhes apenas isto: já nos foram propostas escolhas bem melhores. Infelizmente parece que estamos num dilema entre dois personagens menores da fauna de Nélson Rodrigues: de um lado “a grã-fina das narinas de cadáver” e do outro, o “sobrenatural de Almeida com olheiras de rolha queimada”.

Oh! Política... “Quosque tandem abutere patientia nostra?”

Publicado originalmente no blog http://lucabarbabianca.zip.net em 16/04/2010

luca barbabianca
Enviado por luca barbabianca em 06/08/2013
Reeditado em 03/06/2024
Código do texto: T4421889
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