REFLEXÕES AO ENTARDECER - O IDEALISTA E A REPRESSÃO MILITAR

O sol se escondia por trás da serra, raios dourados se projetavam nas nuvens.

Na serra, um contraste: de um lado, ainda é dia, o sol continua a brilhar; no outro, é pura penumbra, a noite já desce.

Nesta serra se abrigava o idealista ,ou como se costumava dizer, o fugitivo que, tolhido pela mão esmagadora da repressão militar, preferiu correr outros riscos a se entregar aos desmandos dos que calaram a voz de tantos, tirou-lhes a visão, submeteu-lhes a muitos outros tipos de tortura, ou até ceifou-lhes a vida

Foi desta serra que, repetidamente,ele viu o por do sol de um lado, enquanto era ainda dia do outro.

Talvez por diversas vezes, ele ficasse voltado para o lado em que ainda era dia , tentando retardar a chegada da noite.

Sem dúvidas, lá na serra, ele passou a compreender que assim é a vida, enquanto as esperanças morrem para uns, vivas permanecem para outros. E esta conclusão lhe fez se fortalecer e continuar a lutar. Esta certeza lhe conduzia a olhar todos os dias para o último raio de sol, e a não deixar que escapasse, do seu íntimo, o último brilho da esperança!

Foi neste meu momento de contemplação que percebi os pássaros já se aninhando nas árvores, o gado já nas partes mais altas dos pastos, a camponesa com seu rádio no maior volume acompanhando as canções, enquanto lavava as últimas roupas trocadas pelos filhos no final da tarde. Para ela o que importa é aquele momento, aquela música, a noite que se aproxima, o café que vai servir á família, pois o pão já mandou comprar na Cidade. Nela a perspectiva de logo ir para seu sofá, assistir as novelas e mais tarde se entregar talvez a uma noite de amor seguida de um sono profundo.

E a noite vai chegando cada vez mais. Já está quase escuro. As pessoas que voltam para suas casas apressam os passos, enquanto isso, eu paro um pouco e volto a olhar para a serra, vejo que do outro lado dela ainda há muita luz. Passo a relembrar do seu hóspede desconhecido, anônimo, destemido, que lá naquela serra conviveu com insetos, cobras, e teve como amigas as lagartixas. Sua casa no topo da serra tinha como paredes a própria vegetação, como telhado o céu estrelado. Seu agasalho, nos dias chuvosos e nos dias frios era um velho pedaço de lona.

Certamente ele, enquanto aproveitava o último raio de sol na tentativa de tornar mais curtas as noites de solidão, também esperasse ansioso a chegada da noite, pois, no anonimato da escuridão, ele podia se arriscar a descer a serra, visitar alguns amigos ou receber quem sabe a visita de alguns deles.

Claro que raras eram as ocasiões em que podia sair do seu esconderijo. Na maioria dos dias, ao anoitecer, estava nosso amigo ansioso vendo o último raio de sol se esconder, a natureza se aquietar e ele, na sua angústia, olhando longe, tentando divisar na penumbra, talvez aquele vulto conhecido, o vulto de um amigo, que viria lhe trazer alimentos e, com sua presença, com suas notícias, trazer matéria para os pensamentos noturnos e tornar mais agradáveis e menos longas as suas noites de solidão.

Ali estava ele solitário no seu esconderijo, mas muito acompanhado em pensamento por tantos que o amavam demais.

Muitas tardes e infinitos anoiteceres ficava ele a espera do que a noite lhe reservaria. Receberia alguma visita ou seria mais uma infindável noite?

E lá estava ele, naquela noite, pensando em sua família. Nos meninos mais belos do mundo e na linda morena de corpo torneado, que um dia conheceu e que mudara todos seus planos. A mulher da sua vida.

Curtia, então, a saudade dos dias felizes, do aconchego de seu lar. O café servido quentinho, a comida cheirosa e cheia de sabor. O sorriso e o brilho dos olhos das crianças, o conforto e os carinhos da mulher amada.

Nestes seus pensamentos, esboçava um sorriso nos lábios enquanto duas grossas

lágrimas rolavam dos seus olhos e banhavam sua face.

O véu da noite já envolvera a terra, e a lua pouco a pouco subia no horizonte, lançando a claridade sobre as colinas.

Naquele ambiente bucólico estavam ele, a vegetação, os vagalumes e pirilampos. Sapos coaxavam lá no lago junto ao topo da serra. Ao longe algumas vacas mugiam, seguidas dos berros de seus bezerros. O cantar dos espanta-boiadas, também chamados “quero-queros”, o assustava diante da possibilidade de aproximação de algum inimigo.

Naquela noite ele avistou dos vultos que se aproximavam da encosta da serra. Um vinha mais na frente e o outro seguia no mesmo ritmo. Não eram animais. Eram duas pessoas, assim ele concluiu. O coração batia fortemente. Quem seriam aqueles dois? O que poderiam querer?

À medida que se aproximavam lhe aumentava a ansiedade. Eis que ao chegar bem próximo, pararam, conversaram um pouco, e uma das pessoas voltou, enquanto a outra corria serra acima por entre os matos e, ao chegar ao topo, lançou-se em seus braços, beijou-o longamente, e sob a luz do luar lhe sussurrou :”sou eu meu nego” , “sou eu meu amor”

E a noite os envolveu no seu manto protetor.

Antonia Roza

(para Safira Torres e Eurípedes Teles de Menezes)

Novembro de 2001

Antonia Roza
Enviado por Antonia Roza em 04/08/2013
Reeditado em 13/07/2019
Código do texto: T4419681
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