O Mendigo

Penso que embora muitos de nós tente repelir certos impulsos humanos, alguns estão tão cirurgicamente colocados em nosso instinto. Vejam que não estou me referindo aqui a nada científico mas que tem sido sim muito útil a ciência: A Sra. Curiosidade! A nós mais medíocres ela se volta à vida alheia é claro. Embora a minha curiosidade tenha me levado a um maravilhoso assuntamento, pretendo aqui ser breve, pois bem.

Certo dia passava eu pela avenida principal da vila, à qual frequentava muito em por causa dos comércios e já estava cansada de reparar num morador de rua que sempre encontrava no mesmo lugar. Certa vez me pedira cigarros, mas nunca pude iniciar um diálogo, não via pretexto. Mas desde sempre notei que não era ele um mendigo qualquer, por certo que não! Sempre o encontrava com um caderno roto nas mãos e um grafite apontado mil vezes à faca, e ele se punha a escrever com cara de filósofo mesmo. Bem eu sabia que ignorante ele não era mesmo! As poucas vezes que o vira conversando vi que era de palavra fácil e bem falada, quando não falava com um colega de ‘residência’ mesmo discutia assuntos muito cultos com algum transeunte e era atualizado ele! Nesse dia em que conversamos disse-me mesmo que os jornais que catava os lia antes de usar como coberta (foi um bom jeito de quebrar o gelo não?).

Se querem saber qual foi o pretexto que usei no diálogo foi mesmo minha curiosidade incontrolável. Sorri a ele ao passar na volta do mercado e como fumasse ele me pediu um cigarro. Antes de da-lo sentei logo no ponto de ônibus ao lado dele. Dei-lhe o cigarro mas disse que queria em troca um favor:

- Ora menina me surpreende uma rapariga viçosa como você pedindo favores a um tio velho como eu. Mais que velho maltrapilho e sem teto! Hahahahaha

- Ah mas esse você pode muito bem atender!

- Pois diz menina, diz…

Acendeu o cigarro. Mas na sua risada de dentes alvos e imaculados eu estive distraída e perdi o fio da meada. Reparei que nem mesmo era tão maltrapilho, como chegara a essa situação?

- Ia pedir não vai mais?

- Sim, claro que eu vou! Tenho estado bem curiosa de saber o que o senhor tanto escreve, eu sou uma apaixonada por escritas e uma curiosa sem remédio…

Sorriu um sorriso mais jovem do que aparentava ser, quem sabe o sorriso da alma e depois de mais um trago abriu a mochila puída que levava, tirou o caderno.

- Olha não deve estar tão limpo quanto seu caderno da escola mas é o que eu tenho, só por Deus…

- Mas o senhor vai me dar?!

- Claro que não filha, dar é para quem tem! Mas vou te emprestar em nome de sua lealdade com a morte de nossos pulmões!

Em minha mão o cigarro que acabara de acender pesou com um tijolo, embora eu sorrisse por achar graça, fumar ficou pesado neste momento, mas meu pesar foi mais pelos pulmões do velho e pela piada mórbida. Mas logo me apressei em saber qual era o trato:

- Ah mas é claro que não ia me entregar sua memórias de graça né?

- Elementar querida! Mas não pense que vou abusar de sua bondade, peço apenas que ao findar a leitura de minhas memórias, se é que algo como eu tem memórias… Enfim! Ao terminá-las em troca me traga um livro qualquer que não queira mais. Há tempos não sinto o sabor de uma boa leitura! E se o que dá sabor à comida é a fome, estou faminto…

- Você não é mesmo comum! Está feito, 7 dias certos e te trago de volta com o presente nessa mesma hora hein? Até!

Ele me deu para apertar a mão ao que nela deixei mais dois cigarros e o beijei no rosto. Ele não era sujo e foi automático, ao me afastar vi que muita gente nos olhava, mas quem liga?

Cheguei em casa, deixei as compras na mesa mesmo e abri o caderno. Era um universitário de trezentas páginas, dez matérias e só tinha uma por preencher, a penúltima estava no final. Os relatos começavam no ano de 2000, era uma espécie de diário. Considerando que isso aconteceu no ano de 2005, imaginem quanta história não havia ali! Mas asseguro que não vou detalhar já que pedi para ler e não romancear a vida do homem que embora não pedisse segredo não me vejo em plenos direitos para tal.

Pudores à parte conto que a primeira matéria do caderno eram anotações. Não pessoais mas de trabalho. Mais a frente pude definir que era contador e escritor semi-profissional. Algumas folhas puladas e começavam alguns desabafos, sem introdução mas com as datas no topo da folha, ele tinha um filho que morreu numa favela paulista, ele estava na hora errada e no lugar errado num dia de invasão da polícia. Mas como ele viera parar em Minas? Vos pergunto pois não pude definir!

Após a morte de seu filho seu casamento se tornou um caos, assim como a vida toda. Pelos relatos sua esposa lhe cobrava além da morte do filho contas que aparentemente não cabia a ele pagar. Algumas folhas ainda à caneta estavam borradas, provavelmente por lágrimas. Descobri com tal surpresa que apesar de abandonar a profissão ele ainda trabalhava. Aqui ele tinha um pequeno galpão de reciclagem, não morava na rua, era apenas um apreciador das calçadas; morava no galpão. Em suas próprias “palavras a rua é o melhor lugar para se deixar estar quando não existe a possibilidade de um lar”. Quando morava em São Paulo o galpão era alugado aqui e depois de entrar em depressão e afogar as mágoas em muito álcool achou que poderia ser um refúgio e assim sobrevivia trabalhando catando coisas ou e vendendo só pra ter o que comer e vestir, sobreviver basicamente.

Diante daquela vida rota eu pude entender muitas coisas, me absolvi de muitas outras e parei pra pensar qual seria a história de tantos mendigos de verdade,e se haveria muitos “falsos mendigos” como ele, eremitas por melhor dizer…

Fui encontrá-lo pra devolver o caderno, estava mais limpo e parecia mais leve que da outra vez:

- O senhor tem uma história e tanto não?

- Creio que já somos amigos mas eu não tenho história! Quem tem vida é que tem, já não sou mais alguém, sou algo. E Senhor é quem nos olha no céu hahahahaha…

Não pude responder, ele tinha cigarros fumamos juntos e nos deixamos estar. Afinal quem era eu para tirar-lhe a razão? Não disse a ele nem o direi, porém não posso discordar do fato que quando nos tiram um lar e o motivo de nossa existência é impossível mesmo pensar que melhor seria se nos tirassem a vida…

Anne Dourado
Enviado por Anne Dourado em 02/08/2013
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