FILHOS DA DESESPERANÇA

     Parei em um semáforo hoje de manhã e vi uma menina com um rodinho em uma mão e uma flanela imunda na outra, oferecendo-se para lavar o pára-brisa dos carros que passavam por ali. A maioria das pessoas recusava com cara feia e muita má vontade. Eu também recusei. Pensei logo no estrago que aquela flanela imunda e aquele rodinho poderia fazer no vidro do meu carro.  
       A menina não devia ter quinze anos. Era miudinha e raquítica. Se pesasse uns quarenta quilos era muito. O que sobressaia nela era a enorme barriga. Estava grávida e certamente bem próxima do dia do parto. Lembrei-me de um artigo que escrevi ha uns dez anos atrás quando trabalhava com treinamento e encaminhamento de jovens para o mercado de trabalho. O meu maior problema, para encontrar colocação para as mocinhas que procuravam a nossa ONG era justamente o preconceito que os empresários tinham contra as meninas da periferia. A maioria delas ficava grávida antes dos dezoito anos e acabavam dando prejuízo para a empresa. As leis trabalhistas protegem a mulher nessas condições e quem tem que pagar esse custo é o empregador. Briguei com um procurador da Justiça Trabalhista por causa disso e acabei sendo processado por desacato.
        Um pensamento puxa outro e logo me peguei lembrando que quando eu era provedor da Santa Casa de Misericórdia da minha cidade, o maior prejuízo do hospital era justamente o exagerado número de partos realizados em adolescentes. Chegava a vinte por cento do total dos partos realizados no hospital.  A maioria delas tinha menos de dezoito anos. Muitas ainda nem tinham chegado aos quinze. Ao invés do baile da debutante, já estavam trocando fraldas. 
        Esse era e continua a ser um grande problema de saúde pública. A par do fato de essas meninas não ter ainda um organismo suficiente amadurecido para desenvolver uma maternidade sadia, os seus bebês geralmente nascem com alguma insuficiência que os leva a ficar muito tempo nas unidades de tratamento intensivo, com um alto custo para os cofres públicos. E o pior é que são estes bebês que fornecem a maior parte dos números que abastecem as estatísticas de mortalidade infantil. Escrevi um artigo sobre o assunto, publiquei na imprensa local e arrumei um monte de inimigos na política e no sistema de saúde por causa disso. Acabei com um processo nas costas, que estou respondendo até hoje.
       Além disso, há o custo social que a gravidez precoce acarreta. Meninas que se tornam mães muito cedo não estão preparadas para criar bem os seus filhos. A taxa de abandono é grande e a marginalidade alcança essas crianças com muita facilidade. Acabam se tornando presas fáceis do chamado Quarto Estado, que é o crime organizado. Assim, sem o amparo de uma família, sem educação apropriada, sem proteção do Estado, sem qualquer perspectiva de uma vida decente, elas acabam nos semáforos, nas ruas, fazendo de tudo para sobreviver, como essa menina. E quanto ás jovens mães, a maioria abandona a escola e perde a chance de se educar, se profissionalizar e entrar pela porta da frente no mercado de trabalho. O que sobra para elas é aquilo que ninguém desejaria para uma filha, ou filho. Os filhos da desesperança. Os novos anjos caídos.

         Repito algumas palavras que escrevi naquele artigo. “Não sou saudosista. Saúdo, com muita satisfação, a emancipação da mulher. Ela é dona do seu corpo e tem o direito de fazer com ele o que bem entender. Mas penso que as meninas dos meus tempos de adolescente tinham mais respeito pelos próprios corpos. Preservavam-se mais. Selecionavam melhor os parceiros e exigiam deles mais responsabilidade. Uma mulher adulta e já resolvida na vida pode ser mãe solteira quando quiser e ninguém tem nada com isso. Mas uma menina que mal aprendeu a prover as próprias necessidades sozinha, não.  Ela gera um enorme problema social com sua gravidez precoce. Por isso não sei se fizemos bem em banalizar dessa forma o sexo. Hoje, um menino encontra uma garota na balada e conversam, dançam, “ficam” por algumas horas. Se der química, é bem provável que terminem a noite numa cama de motel, ou na própria casa de um deles. Não há mais a ternura do namoro, nem a aproximação lenta e amplamente sugestiva dos pequenos avanços, realizados pouco a pouco, estrategicamente resistidos para aumentar o apelo à fantasia. As frestas estreitas, que se abriam pouco a pouco, desvendando o mundo infinito da imaginação, hoje são portas que se escancaram no primeiro empurrão.”
  
        Talvez seja impossível reverter esse quadro catástrófico apelando apenas para a idéia da paternidade responsável. A emancipação do instinto sexual banalizou o instituto da procriação. Pouco restou da aura de sublimidade que antigamente cercava essa sagrada função do corpo humano. A propalada educação sexual que as escolas deviam dar parece não estar funcionando. Os índices de gravidez precoce só parecem aumentar. Em meio a tudo isso ainda temos a Igreja, condenando os meios artificiais de concepção.
        Quanta coisa pode passar por uma cabeça em trinta segundos. O sinal abriu e eu fui embora. Risquei da minha lista de preocupações esse problema. Quando paro no próximo sinal vejo uma churrascaria com uma placa que diz:” a carne servida neste restaurante provém de animais criados em cativeiro.”
        Não pude deixar de registrar o paradoxo. De um  lado a liberdade que destrói, de outro o cativeiro que alimenta. Durma-se com um barulho desses.