Um quarto sem piso
Recebi uma notícia que me deixou sem chão. O piso do pequeno quarto que há três anos alugo na Asa Sul começou a se desprender e precisava ser trocado. Diz a dona do quarto que provavelmente foram os dois produtos químicos fortíssimos que ela mesma jogou no chão, pensando em facilitar a vida da mulher que deveria limpá-lo. Queria acabar com toda a sujeira. De certa forma deu certo, pois não imagino que esses azulejos voltem a ficar sujos algum dia, especialmente depois que não forem mais usados. Isso foi no fim-de-semana. Meu quarto balançava, e a dona dele, uma senhorinha entre 60 e 70 anos, se consumia em preocupação. Esse quartinho fica aos fundos de sua casa, e ela garantiu que ia me hospedar o tempo que fosse necessário para trocar o piso. Em sua cabeça, ela pensava em dias, semanas até. Disse que entendia a minha chateação. Mas eu estava achando tudo muito divertido.
Dona Lúcia, a senhorinha, mora apenas com o irmão, alguns anos mais novo. De nada lhe adiantou os sete casamentos que teve ao longo da vida. Renderam-lhe duas ou três filhas que não a visitam. Sua única visita é a de um irmão, bem sucedido, que todo final de semana aparece, fica uns quinze minutos, dá alguns conselhos e depois se vai dizendo “aquele abraço”, mas sem nunca abraçar. O irmão mais novo é um personagem curioso, e que raramente sai do seu quarto, onde escuta programas católicos e dorme de luz acesa. Vez ou outra ouço algumas, hã, altercações entre os dois. Mas ele muitas vezes presta atenção no que Dona Lúcia tem a dizer, e Dona Lúcia sempre tem muito a dizer.
Neste fim-de-semana nervoso para Dona Lúcia, ele recomendou que ela fosse à missa. Mas Dona Lúcia não quis ir, pois estava tão nervosa que mal conseguia sair do banheiro. E não bastava eu lhe assegurar que, da minha parte, estava tudo tranquilo. Na segunda-feira sai para o trabalho e, quando voltei, ouvi as novidades. Veio um homem olhar o piso e disse era coisa rápida. Arrancou o piso solto, disse que no outro dia colocaria o piso novo e ao terceiro dia eu estaria de volta. Isso tranquilizou Dona Lúcia. E eu me mudei então para um quartinho de visitas em sua casa, recebendo as boas vindas quase solenes do seu irmão.
Ouvi as boas recomendações da Dona Lúcia, recebi autorização para fazer praticamente tudo dentro de sua casa, e ela então se despediu, recolhendo-se à sua alcova. Como o irmão já estava trancado em seu quarto, assim ficamos os três naquela primeira noite juntos – ou seja, totalmente separados. Pela manhã, tomei banho e café, aprontei-me para o trabalho e não vi nem um nem outro. Que modo engraçado de se morar na mesma casa!
Bem diferente foi a manhã do outro dia, quando encontrei Dona Lúcia acordada e bastante animada. Ela morria de frio e vestia um casaco de esquimó. Achou-me de manga curta. Expliquei que frio só existe no sul. Ela ria. Sentou-se comigo enquanto eu tomava café e, em meio a gargalhadas, reviu todo o drama do piso. Eu mal abria a boca, apenas deixava sua euforia correr solta. Perguntou coisas do meu trabalho. Avisou-me da morte do Gonzaguinha – na verdade, Dominguinhos. Disse que lavaria a louça pra mim. E por todas essas coisas eu senti que me tinha como filho.