Inferências apressadas

INFERÊNCIAS APRESSADAS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 31.07.13)

Desgraçadamente não é a primeira vez que isso acontece. Agora até que não foi muito grave. Mas é a mania dele de tirar conclusões a partir das deduções que vive fazendo. Também é verdade que, no geral, ele acerta em cheio. Por exemplo: quantos, dos pouco mais de 3.200 habitantes de São Martinho, no Sul de Santa Catarina, haverão de possuir uma Scénic verde-escura? Destas, quantas estarão na Capital do Estado estacionadas bem em frente ao prediozinho que abriga o escritório de advocacia com o qual o Dr. Saulo Osório, advogado são-martinense da gema, mantém uma cordial e profícua relação de correspondência, do tipo "tu tratas dos meus assuntos na Capital e eu cuido dos teus interesses em São Martinho, quando calhar de ocorrer uma necessidade dessas cá ou lá"? Parceiros de negócios - inclusive, mas não exclusivamente, de negócios jurídicos -, além de grandes amigos e colegas de faculdade, Saulo Osório tem trânsito livre com o titular da banca em frente à qual a Scénic verde-escura encontra-se estacionada com uma das rodas escandalosamente apoiada sobre o meio-fio, forçando de maneira dolorosa a borracha do pneu.

Ora, Saulo Osório é sobejamente conhecido (pelos que o conhecem) por seu estilo desapegado de lidar com as coisas materiais e com os sinais de trânsito. Assim, estacionar sobre a calçada, por pura distração ou mera desatenção, não é atitude rara de presenciar no seu comportamento. Ao ver o carro com placa de São Martinho parado daquele jeito, e com uma moça da Zona Azul fazendo anotações num bloquinho enquanto copia os dados do veículo, Manoel Osório pensou consigo, com mil demônios, o primo Saulo Osório então vem à cidade e sequer me avisa que está passando por aqui? Ainda assim, não teve dúvida: puxou do celular e ligou para o parente:

- É bom dar uma chegada agora mesmo aqui em frente e tirar o teu carro de cima do meio-fio porque estão te multando, rapaz.

- Só se me roubaram a caminhonete, pois estou belo e formoso na minha casa e o carro deve estar na garagem.

Conclusão: há pelo menos duas Scénic verde-escuras em São Martinho dirigidas por motoristas igualmente descuidados e que têm algum tipo de negócio na Ilha.

Pior, bem pior, porém, foi da outra vez. Ao sair de uma transversal, Manoel Osório viu passar um carro com películas muito escuras nos vidros e, quase sem querer, seguiu-o pela SC-401, a estrada que vai para o Norte da Ilha. Reconheceu o veículo, até mesmo pelo adesivo do Criciúma Esporte Clube colado junto à lanterna traseira direita e, claro, pelo nome do município do Sul do Estado, exatamente o lugar em que Daviid Osório, filho do tio Abraão Osório, é presidente da Câmara de Vereadores (por isto que se omitiu aqui o nome da cidade: a fim de preservar a intimidade do nosso personagem). Alta autoridade municipal que é, Manoel Osório concluiu que ele certamente se dirigia à sede do governo estadual para tratar de magnos assuntos da sua comunidade. Mas não. Daviid Osório seguiu adiante, tão adiante que foi parar num motel, próximo ao qual reduziu a marcha apenas o suficiente para poder entrar em segurança no alegre estabelecimento.

Manoel Osório deu alguns minutos e, o riso sardônico, ligou para o celular do primo:

- Então, amigão, estou atrapalhando alguma coisa importante?

- Cara, ia mesmo te telefonar! Podias dar uma ajuda se minha mulher precisar de alguma coisa? A Dâni Osória viajou hoje cedo para a Capital com o meu carro, o dela ficou na oficina. Anota aí o número dela.

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Amilcar Neves, envolvido com a criação de uma nova novela, é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com.

"Somente teremos discussões salutares neste País se respeitarmos a História."

Eu Mesmo, em 17.04.13, respondendo a e-mail sobre golpe de 1964 e ditadura de 21 anos.