Tanque cheio (como o racismo pode ser sutil)
Tanque cheio
O trânsito desta cidade está cada vez pior. Já faz vinte minutos e não saio do lugar. Com pessoas estressadas ao meu redor, o melhor é ignorar o buzinaço e manter a calma. Mas o que mais me deixa injuriado é o fato de todos me olharem com indignação e surpresa. Pudera. Sou um negro, bem vestido, conduzindo um Honda Civic. E para muitos isso já é motivo de estranhamento.
Depois de tanto tempo em marcha lenta, o ponteiro da gasolina estava na reserva. Resolvo então, parar num posto a poucos metros adiante, e logo ao chegar, reparo que o mesmo posto que outrora abastecia meu carro parece um pouco modificado e perguntei ao frentista:
– Boa tarde, este posto não é mais self-service?
– Ah, não! Desde semana passada que não é mais. Tivemos que mudar.
– E por que?
– Não deu certo. O movimento caiu. As pessoas não se habituaram ao novo sistema. É assim mesmo, o brasileiro gosta de ser servido. O que vai ser?
– Completa, por favor! – respondi dando-lhe a chave.
– Pois não. – E tirando a mangueira do gatilho emendou a maldita pergunta que tanto me perseguia: – Você? É jogador de futebol? Não é?
Foi sempre assim, ao me verem bem vestido num carro de marca sempre vinham as perguntas mais estapafúrdias, do tipo, “O senhor é pagodeiro?” Ou então; “É algum atleta, maratonista ou corredor dos cem metros rasos?”.
Eu respondo sempre educadamente, pois já houve casos em que o rapaz, vendo meu silêncio, extrapolou:
– Ah! Já sei! O senhor é americano! Não fala português!
Essas situações já faziam parte do meu cotidiano. Tanque cheio, então eu perguntei ao frentista onde poderia checar o óleo e ele me indicou uma vaga mais a frente. Chegando lá, um senhor me recebeu e tratou de examinar o carro. Constatando que realmente era preciso trocar o óleo, começou o serviço. Eu fiquei ali perto e ele engatou uma conversa, sempre muito simpático, falando de futebol, política e, orgulhoso, mostrou–me as fotos das filhas e coisa e tal. Tanta gentileza e eu já estava absorto na conversa e feliz pelo fato de o tal senhor não haver mencionado nenhuma daquelas perguntas que tanto me irritavam. Mas demorou pouco.
– Acabou? Quanto é? – perguntei.
– Ah! Pro senhor eu faço um preço camarada... É por que eu te conheço.
– Me conhece?
– Sim, o senhor é um dos finalistas do Big Brother!
E voltei pra casa com a certeza que aquele dia fora igual a tantos outros que já passei.
A crônica “Tanque cheio” foi publicado em 16/12/04 na revista Via Brasil na Suíça – edição número 17/04.
Sobre o autor:
http://marcelomadeira.wordpress.com/