Era um dia como qualquer outro
Era uma manhã parecida com as outras... acho eu. Na verdade, nunca consegui prestar muita atenção nas manhãs naquele horário de alvorecer e esta não foi exceção. A luz débil penetrava pelas janelas de vidro da casa e um frio sepulcral escorria por debaixo das portas e chegava até o meu esguio corpo. Nada mais me fazia tremer tanto, quanto comer pães gelados, graças a uma noite na geladeira, sentado à mesa quintal afora. Minha cachorra negra como carvão estava animada no quintal, bem diferente de mim, enquanto os cacarejos de galos soavam além dos muros de tijolos.
Vestido e pronto para minha jornada, eu coloquei a bolsa nas costas e pus-me a caminhar durante uma única e curta quadra até o estacionamento de ônibus onde uma enorme máquina branca e verde esperava o horário de sua partida em direção à capital do estado. Minha mente estava em branco, não me lembro de ter pensado em nada enquanto um passo sucedia-se ao outro, talvez fosse o sono, talvez uma preparação involuntária para o novo foco no qual minha mente se concentraria para o resto de minha vida. Meu rumo mudou naquele dia. Diga-se de passagem, mudou para melhor.
Ainda prejudicado pelo frio, comprei minha passagem e esperei no longo banco de madeira ao lado de nada além do que a solidão. Na parede defronte a mim, um segundo banco, irmão de berço daquele em que estava, estendia-se paralelo ao meu. Minha vida se retratava neles, visto que poderiam estender-se indefinidamente sem, contudo, tocarem-se; também vivo sem conseguir alcançar quem eu desejo tocar, meus amigos de madeira. Será que seus destinos são mais tristes do que o meu? Vocês vivem um próximo do outro, mas sem a possibilidade de contato; enquanto eu vivo sem saber quem me espera no final do infinito e, consequentemente, sem a mera menção ao olhar de quem estará lá, se caso existir alguém a me esperar lá.
Depois de recompor-me e esquecer tais reflexões que me perturbam e me entristecem pela falta de companhia em minha vida, eu percorri os olhos pelas pessoas sobre o banco. Se minha memória não me falha, um senhor de chapéu de palha estava com as duas mãos em uma bengala e seus óculos pareciam embaçados; mais à frente, uma moça de corpo ligeiramente adiposo e pele morena acompanhava uma segunda senhorita, esta bem mais nova e de cabelos cacheados, assim como eu imaginava quando pensava em mulheres bonitas criadas na minha cabeça. Ela, assim como a outra, era morena, da cor de caramelo. E posteriormente comprovado por mim, com o sabor também.
Suas roupas eu não lembro, me envergonho disso, porém lembro-me dos calçados: sapatilha vermelha com aberturas espaçadas por poucos milímetros que subiam nas laterais dos pés até uma faixa no centro do peito do pé, pareciam costelas que tocavam o esterno. Me vem um sorriso largo sempre que lembro o quanto esta sapatilha a deixava sem graça, pois ela possuía uma história antiga e engraçada, embora a dona nunca tenha me contado. Já havia visto o rosto dela em algum lugar, não me recordava onde, muito menos quando, mas ele era familiar para mim. E tão bonito.
Mantendo-me abraçado à minha essência de homem reservado, não dirigi nenhuma palavra a elas. Um olhar era tudo que poderia fazer e fora tudo o que fiz. Quando o momento da partida se aproximava, agarrei minha mochila e parti para o ônibus. Sentei-me na primeira cadeira, sempre gostei dali, era aconchegante, balançava pouco, era próximo do motorista e da saída e não havia risco de alguém descer a cadeira da frente sobre mim, era perfeito; liguei o mp3 do meu celular e coloquei os fones. Foi então que ela subiu e cruzou o corredor do ônibus com seus passos curtos, não lembro-me se sua irmã subiu com ela, mas não importava, uma sensação estranha me fez olhar para ela e só para ela.
Antes daquele colosso branco e verde começar a se mover e vibrar nas ruas e avenidas, um impulso me fez levantar a cabeça, virar o tronco e olhar para trás. O ônibus estava quase vazio: a bela senhorita estava na quarta fileira atrás de mim; duas mulheres estavam do outro lado três fileiras atrás; e outro homem na frente, perto de mim. Voltei à posição normal.
Juro que não entendo o que me motivou a fazer o que fiz a seguir, mas, entendendo ou não, eu o fiz. Uma força além da minha compreensão tomou conta de mim e eu me entreguei a ela. Levantei-me, peguei a mochila e caminhei até a poltrona dela, e com a maior cara de pau que já tive na vida disse: se o dono da cadeira aparecer, eu saio. – e sorri para ela enquanto sentava-me na poltrona a seu lado. Ela sorriu de volta. Percebi em seu rosto que ela não entendeu minha atitude, pois nunca conversamos antes e o ônibus estava vazio e, portanto, eu poderia sentar-me em qualquer outro lugar. Não poderia fazer nada para ajudá-la, visto que eu também não entendia o porquê dessa atitude minha. Uma mão invisível me guiou.
Sentado do lado daquela princesa, eu descobri que aquela força estranha queria apenas o meu bem. Descobri que a moça se chamava T****** e que era amiga antiga de um dos meus três melhores amigos; também descobri que ela era uma ótima companhia e ainda mais linda de perto; descobri que gostava de fazê-la rir e que a delicadeza dela me deixava mais sorridente do que o normal; descobri que queria ser amigo dela.
Mas como em todo conto que se preze, eu dei uma bola fora e, enquanto dormia na cadeira ao lado da senhorita e ela ouvia músicas no meu celular, uma quantidade razoável de pães se balançava em meu estômago a cada curva da máquina em que estávamos; não tardando, o “deslize” aconteceu e todo o chão ficou adornado com porções pequenas de pães gelados. Me senti um idiota naquele momento. Por que não fui ao banheiro?! Por que não segurei?! Idiota, idiota... Ela, com toda sua educação, perguntou se eu estava bem e, seguindo orientações minhas, pegou uma toalhinha de rosto que estava na minha mochila. Posterior a isso e nunca tocando nesse assunto, ela me ofereceu uma cama para dormir ao término da viagem às 11:00 AM e também um almoço na casa de sua irmã.
Nenhum de nós sabia ou imaginava, mas no nosso próximo encontro aconteceria nosso primeiro beijo. Eu não pensava em nada além do que ocorria naquele momento sobre a cama Box da irmã dela, só seguia meu mais puro instinto: beijá-la com paixão. Agora, contudo, tanto tempo depois de tudo isso, eu queria registrar por escrito o que me lembro desse dia memorável e do dia em que nos beijamos pela primeira vez, pois desejo passar muito tempo ao lado desse sonho de cabelos negros e cacheados e não quero que se percam essas belas lembranças durante os anos que se sucederão.
Queria um dia ser o homem que você merece que eu seja, princesa minha.