“História de bem-te-vi” e alguns poucos desdobramentos

(Vicência Jaguaribe)

18/01/2013

Não sei se você, leitor, conhece a crônica “História de bem-te-vi”, de Cecília Meireles. Nessa crônica, a escritora mostra-se contrariada por não mais ouvir, como antigamente, o tradicional canto dessa ave, cujos sons compõem seu próprio nome: bem-te-vi... bem-te-vi... O que ouvia nos últimos tempos era um deturpado te vi... te vi... Confesso que não acreditei naquela história. Aquilo só podia ser coisa de poeta. Quem já viu passarinho mudar o canto?

Mas há alguns meses comecei a desconfiar de que Cecília Meireles não brincava nem fazia literatura quando disse que o bem-te-vi alterara seu chilreio. Minha vizinha, uma senhora de 90 anos, bem-disposta e muita ativa, sem conhecer a crônica de Cecília, falou nessa variante do canto do bem-te-vi. A mesma história: em vez de cantar, como sempre cantara, bem-te-vi... bem-te-vi..., ele agora cantava simplesmente te vi... te vi...

Cecília Meireles tendia a acreditar no desaparecimento da espécie, por causa da adulteração do canto: de bem-te-vi para o aferésico te vi... te vi... E, conforme diz ela, “com a maior irreverência gramatical”, numa alusão clara à colocação do pronome oblíquo.

Pois não é que hoje, mais de quarenta anos depois de Cecília Meireles escrever essa crônica, aconteceu comigo! Estava na cozinha, entre sete e oito horas de uma manhã ensolarada e calorenta, como costumam ser as manhãs cearenses nesta época do ano, preparando meu desjejum, quando ouvi o inconfundível bem-te-vi. Fui até a janela da cozinha, de onde se avista um pequeno pomar, e escutei com mais precisão bem-te-vi... bem-te-vi e, como um eco, te vi... te vi..., marcado pela desobediência à norma gramatical mais do que caduca de, no português, não se começar frase com pronome oblíquo.

No primeiro momento, achei que fantasiava ou curtia um belo estado de confusão mental. Mas não, estava bem orientada e pisando no chão firme. Chamei a Noêmia para ouvir aquele canto adulterado, mas, infelizmente, chamei a pessoa errada. A Noêmia não é de gastar o precioso tempo destinado às suas obrigações domésticas ouvindo passarinho cantar. Mas eu fiquei em alerta. E o canto se repetiu várias vezes, alternando bem-te-vi com te vi, como se o segundo fosse o eco do primeiro.

O fato, refleti, é que elas estavam certas. Quem? Cecília Meireles e minha caríssima vizinha, é óbvio. Nem a primeira estava fazendo literatura, como pensei, nem a segunda, louvando, como dizia meu avô materno.

Houve um momento em que pensei ouvir outra variante: vi... vi... Será? Acho que não. Devia estar confundindo, naquele momento, sim, ficção com realidade, ou impressionada com o trecho da crônica em que Meireles diz ter ouvido, ainda, vi...vi..., em vez de te vi... te vi...

Cecília associa, penalizada, essas variantes do canto do bem-te-vi à provável extinção da espécie: “Mas há um passarinho chamado bem-te-vi. Creio que ele está para acabar. [...] O que me leva a crer no desaparecimento do bem-te-vi são as mudanças que começo a observar na sua voz”. Não, cara poetisa, não acho que essas mudanças sejam o prenúncio do fim da espécie e, sim, uma etapa do incansável processo da evolução. Observem-se os bebês: até alguns anos atrás, passavam dias de olhos e mãos fechados; agora, abrem os olhinhos e as mãozinhas assim que nascem. Observem-se as crianças: a puberdade está chegando mais cedo. Em síntese, assim como tudo se antecipa para acompanhar o ritmo estonteante da era pós-moderna, pode-se lançar a hipótese de que os passarinhos também tendam a abreviar o canto.

A escritora também estabelece uma relação entre a variante te vi, sintaxe não abonada pela gramática normativa, e a rebeldia das novas gerações — novas para aquele tempo, nos idos de 1960 —, que se voltavam contra as normas estabelecidas, inclusive as gramaticais: “Como dizem que as últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras, achei natural que também os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano”.

Se a crônica fosse escrita nos dias de hoje, talvez a poetisa encontrasse outras associações, como, por exemplo, a próclise condenada pela gramática normativa, com a falta de conhecimento da língua. Isso mesmo, ilustre poetisa, a juventude brasílica de hoje não valoriza a língua que fala. Parece ter vergonha de ser falante do português. Estuda mais o inglês do que o português. Alguns desses jovens, quando escrevem, dão a impressão de que a língua portuguesa não é a língua que ouviram desde o berço, tal o desconhecimento de sua estrutura e de seu funcionamento.

Na realidade, é triste e angustiante constatar o desprezo com que o jovem brasileiro vê sua língua materna e como enxerta em seu discurso, sem necessidade, expressões estrangeiras. Do francês? Do francês, não, que a língua de Voltaire, de Victor Hugo, de Balzac e de muitos outros ícones da cultura mundial está desmoralizada. Do inglês mesmo, que é, hoje em dia, a língua da diplomacia, do comércio e de todas as outras instâncias das atividades humanas na pós-modernidade.

Confesso que as variações do canto do bem-te-vi não me assustam nem me preocupam, mas o descaso dos brasileiros à língua portuguesa, sim. Todos sabemos ser necessário que, de vez em quando, nos afastemos das normas cristalizadas, fazendo-o, no entanto, com algum propósito e conscientemente. Para afastarmo-nos da norma, pois, é preciso conhecê-la. Esses afastamentos ou desvios, dependendo do contexto e das intenções, são muito positivos.

No poema VII, incluso na terceira parte da obra O livro das ignorãnças, declara Manoel de Barros que, segundo seu primeiro professor de agramática, “gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável / Há que apenas saber errar bem o seu idioma”. Disso o brasileiro nem desconfia, of course.