Lira paulistana
E no meio do inverno eu descobri que dentro de mim havia um outono invencível. Vestindo agasalhos e melancolias, eu caminhava sozinho pelas ruas de uma São Paulo quase provinciana. Sou um homem livre em meio à multidão que trabalha, geralmente naquilo que não ama. E, por ser assim, também sou um homem cheio de dúvidas, que não sabe para qual parte da cidade levar as suas angústias. Mas tenho muito rostos, e por isso caminho com naturalidade – passo facilmente por paulista. A única coisa capaz de me trair são os cruzamentos: sempre olho para o lado errado antes de atravessar a rua. No mais, sou também um quatrocentão, mais velho que os tantos prédios históricos por onde passo, e digno da mesma indiferença na bagunça das calçadas.
Ah, a Estação da Luz! Tanta poesia, tanta agressão. Antigamente até Nossa Senhora era da Luz. Hoje não haveria espaço para ela nos vagões da CPTM. Os trens chegam, já sem nenhum romantismo, as portas abrem e as pessoas disparam ensandecidas – reforço: disparam ensandecidas. E neste tenro gesto vos contemplo. Somos milhões, e para não nos esmagarmos e nem pisarmos uns nos outros, pedem apenas que deixemos a esquerda livre quando usamos as escadas rolantes. Feito isso, estamos livres para ter a pressa que desejarmos. Mas eu sou atraído pelas melodias de um pianista de Hamelin – inacreditável respiro no meio da afobação, bem-encaixado adereço num ambiente em que a própria visão de onde se está já não causa a menor comoção.
Volto às ruas e tenho a nítida impressão de que todo mundo está perdido. Estão todos querendo chegar a algum lugar que não sabem onde fica. Frustro a todos que me pedem informação. Tenho sempre engatilhado o irrefutável argumento de não ser daqui. Quase o usei para dispensar uma garota que me oferecia canetas e chaveiros para ajudar não sei qual causa. Achei caro e não comprei. Mas tive pena da garota, que no meio da praça pouco movimentada arrumava coragem para abordar aqueles que mais tinham cara de cristãos – e eles não compravam. Continuei meu caminho, somando essa às outras tristezas que carregava comigo.
Estou agora na Consolação, geograficamente falando. Também aqui, como em todo lugar, há um pedaço do meu passado. O velho Giese, homem lá do sul, um dia morou no distrito da Consolação. Isso no tempo em que o velho Giese não era velho. O que veio fazer aqui, velho Giese? Ou, pior: o que eu estou fazendo aqui? Tenho andado muito, e nem sempre soube para onde estava indo. Mas continuo andando, porque ficar é impossível. Aproveito para entrar na igreja local e ouvir um pouco do silêncio paulista. Vejo almofadas no espaço em que os fiéis se ajoelham, o que deve ser uma consolação muito grande.
Percebo com satisfação que a sombra em São Paulo é inevitável – os prédios a garantem. O sol está pálido, dentro e fora de mim. Nebulosidade variável, com possibilidade de chuva no decorrer do período. Garoa, sai dos meus olhos! Deixe-me ver as coisas como elas são! Pego um jornal e me dou conta que coisas continuaram acontecendo no mundo, apesar de eu estar viajando. Procuro um banco para sentar – estou cansado de tentar não me importar. Sentado, espero o primeiro pedinte, que já se aproxima.