Era um domingo ensolarado, as plantas sem movimento nenhum denunciavam caladas o sufocante verão carioca. Era o mês de janeiro e faziam trinta e nove graus. Ciro caminhava buscando a sombra, enquanto ia para o ponto de ônibus. Ele queria pegar a condução cujo número ainda não gravara direito. Ia para a casa de Sheila, sua mais recente conquista. Saíra da pensão onde morava na Rua Montevidéu e tomara o caminho do IAPI da Penha. Quando chegou à parada de ônibus, percebeu que a condução ainda não estava lá. Aproximou-se do fiscal, que estava abrigado numa guarita, e perguntou.
- Que horas o ônibus da UERJ passa?
- Às três e quinze. – respondeu sem pestanejar o empregado da empresa de ônibus – faltam cinco minutos. O fiscal, um negro forte azeitonado, mostrou a bela e bem cuidada dentadura com um sorriso amistoso, natural das terras cariocas. Ciro se animara e, acendendo um cigarro, esperava o coletivo, que já apontara na entrada da pista e se preparava para fazer a manobra de circular os prédios, a praça do conjunto e assim se posicionar no ponto. Logo que o veículo parou, Ciro e mais cinco pessoas  embarcaram. O ônibus, esvaziando a parada, pôs-se a caminho de seu itinerário. Veloz, seguia praticamente vazio pela avenida que passa em frente à estação de trem de Ramos, quando o motorista avistou  de longe uma multidão vestida com a camisa do Flamengo. Era dia de clássico pela Taça Guanabara entre o rubro-negro e o Vasco da Gama. Com a pista tomada pela torcida organizada, o condutor foi obrigado a pisar no freio e começou a ficar preocupado. Desabaladamente a turba invadiu a condução, forçou ambas as portas e adentrou, gritando, urrando seus gritos de guerra. O líder do bando, um sujeito de estatura média, branco, com a cabeça pelada, gordo e cheio de medalhas no peito, apelidado pela turba de Sustagem, educadamente, sem alterar a voz, observado por um mar de gente, falou ao trocador.
- Ninguém aqui tem um tostão. Vocês nos levam ao estádio? – perguntou cinicamente Sustagem. Temendo pela segurança do veículo e dos passageiros, o trocador respondeu ainda atordoado pelos gritos.
                             - Fiquem à vontade! – antes de bater uma moeda na catraca, mandando o motorista tocar a viagem. Via o trocador os alucinados flamenguistas pularem ou passarem por baixo da roleta. O homem que lhe perguntou era educado e controlava com mão de ferro horda. A torcida começou a fazer seu show particular, cantando bem alto e batucando nos bancos laterais do ônibus. A condução parecia que ia explodir, quando um desavisado vascaíno deu sinal. Sustagem gritou, mandando o motorista parar o ônibus. De imediato foi atendido e a condução estacou. O vascaíno, quando percebeu a situação já era tarde. Estava dentro do ônibus no meio de seus rivais. O líder da torcida falou sem alterar a voz, abraçando o ombro do torcedor rival, trazendo para si.
- Qual o seu nome? – perguntou atencioso.
- Ma- Ma- Manoel Elias! – respondeu olhando atônito para a horda flamenguista, que fazia silêncio enquanto o líder falava.
 
- A galera aqui está sem grana. Somos cinquenta e tamo indo por conta da caridade do trocador e do piloto. Você pode pagar pra gente?
Manoel Elias, o pobre vascaíno, diante dos berros alucinados da torcida organizada, tirou a carteira e entregou-a ao trocador, sem dar um pio. Este, temendo um massacre, pegou a carteira, fez a conta na máquina de calcular e deu graças a Deus. O dinheiro era o suficiente para  pagar a conta. O coletivo seguiu viagem. O vascaíno, com o uniforme tradicional do time dele de coração, branco com uma listra diagonal preta e a cruz de malta, sentou-se no lado do corredor vizinho a Ciro. Este, um  cearense chegado há pouco tempo no Rio de Janeiro, estava apavorado com oque via e vivia. Meu Deus, só tem louco por aqui! Via Manoel Elias sentar no banco e ficar estático, olhando para o chão. Os flamenguistas toda hora passavam a mão frente do rosto do vascaíno, que não piscava; depois, gritavam vários impropérios no ouvido dele e nada, diante da insistência de falar-lhe. Nem um pio nenhuma palavra. O vascaíno Manoel, numa concentração de invejar um ninja, nada dizia. Sustagem, querendo ver até que ponto ia aquela situação, falou.
- Tamo diante de um milagre! – disse olhando o vascaíno de perto. Tamo diante de um pedaço de pau que anda e tem dinheiro. O vascaíno, impassível, olhava para o chão e mantinha um silêncio profundo, enquanto os gritos de “Mengo, mengo” faziam o coletivo vibrar. Não satisfeito ainda, o líder dos flamenguistas disse aos companheiros.
- Este pedaço de pau está muito mal vestido! A camisa dele é muito feia! Tirem ela sem machucar o pedaço de pau! Imediatamente cinco torcedores tiraram a camisa do Vasco da Gama.
- Agora façam uma fogueira com esse lixo. – disse calmamente o Sustagem -  mas eu quero perguntar uma coisa a ele: você gosta do Flamengo?
O Manoel Elias, sem pestanejar, meneou a cabeça afirmativamente três vezes e baixou a vista. O líder de torcida, para completar o espetáculo, indagou ao vascaíno, olhando fundo nos olhos dele, depois de erguer-lhe a cabeça pelo queixo com a mão.
- Você quer uma camisa do Flamengo? Eu te dou uma! – o pobre Manoel Elias,  com uma lágrima rolando na face, aceitou. Olhos, injetados de sangue, responderam com um brilho.
- Pois bem, galera! Sem machucar, coloquem a camisa nele!
De repente, os flamenguistas avistaram uma legião bem maior que a deles do time adversário. Vinham a pé. Agitação foi geral. Dando um grito de ordem, estrondoso, Sustagem fez todos ficarem calmos.
- Vamo descer! Rápido! Dispersar, galera! De chofre todos, o mais rápido possível, desceram. Mas, antes do último sair,  o líder disse.
- Fica quem estava e o nosso pedaço de pau! – partiu acelerado.
Os vascaínos, querendo briga, perceberam a manobra e partiram ferozes para o ônibus; atrás dos rivais, que fugiam numa carreira desabalada, procurando se dispersarem. Nova mente o coletivo foi invadido e, com raiva por não terem brigado, os vascaínos puseram fogo no carro.
 
Moysés Severo
Enviado por Moysés Severo em 26/07/2013
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