Quase só coração

Ele só ia para a cama à meia-noite, depois do último jornal. Hoje não vai mais, pois dorme já o sono eterno. Sono que lhe chegou suave, pelas caladas, pegando-o desprevenido no começo da noite, quando suspirava, debruçado na janela, admirando a lua cheia que brilhava como um enorme globo de luz; cansado, mas satisfeito com o dia que terminava. Não acordará mais às seis da manhã, não preparará mais o café, não buscará mais o pão quentinho na padaria da esquina. Não voltará mais para casa, depois do trabalho, trazendo salsichas para fritar no jantar e um chocolate para cada uma das filhas. Não receberá mais amigos e parentes em sua casa com um sorriso acolhedor e uma alegria de viver que, de tão simples, era perfeita.

Ele era simples. Simples por não querer muito mais do que já tinha: o amor da família, boa saúde, um trabalho que lhe agradava e um bom lugar para viver. Simples por não se preocupar com o que não merecia preocupação e por não ficar chorando o leite derramado. Simples por economizar energia para curtir ao máximo cada pequeno deleite que a vida lhe oferecia, a começar pela graça de poder acordar todos os dias, preparar o café, buscar o pão e estar com a família, que ele tanto amava. Simples por ser o que era: quase só coração.

Ele cultivou a bondade, a alegria e a humildade, por isso está bem agora.

(À memória do tio Walter).

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 25/07/2013
Reeditado em 26/07/2013
Código do texto: T4404487
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.