Histórias da minha família,contadas por quem as viveu!!
A LEMBRANÇA DA MINHA AVÓ AMÉLIA
Conta minha mãe que quando nasci vovó Amélia estava em Paulo Afonso com tia Vivi passando uma temporada. O fato é que a criança bonitinha (se era mesmo, ou estória da coruja não sei) tinha umas orelhas esquisitas e pequenas, redondas e de abano, único defeito identificado naquela formosura.
Revoltada com aquela maldade da natureza, minha avó Amélia prendia minhas orelhas com esparadrapo e colocava uma toquinha por cima e assim, presas à cabeça permaneciam durante todo o dia. Mesmo assim, teimosas, era só o arranjo ser desfeito, voltavam a sua posição original, de abano. A estratégia de minha avó Amélia não consertou minhas orelhas, mas cresci acalentada por um sentimento de carinho e simpatia por seus esforços para me embelezar.
Até sete anos, esta era a única referência que guardava dela, quando, aproveitando uma viagem para Dias D'Avila tive finalmente a oportunidade de ver minha avó tão compadecida das minhas orelhas de abano. A viagem seria minha primeira aventura longe das saias da minha mãe.
Selecionada entre as Fadinhas (fui bandeirante dos sete aos quinze anos), para participar de um acantonamento (acampamento era para as bandeirantes), onde se reuniriam fadinhas de todo estado da Bahia. Sairia de Paulo Afonso em um caminhão tipo pau-de-arara cedido pela Chesf e num percurso que atravessaria os municípios de Jeremoabo, Antas, Cícero Dantas, Cipó, Nova Açoure, Entre Rios e outros, passaríamos por Alagoinhas (na ida e na volta) a caminho de Salvador, onde dormiríamos. Meu padrinho e família se encontravam nas andanças pelo interior da Bahia, a serviço do exército brasileiro.
Enfim, todos os grupos de fadinhas reunidos na Baía de Todos os Santos, rumam em comboio para Dias D'Avila.
O acantonamento consistia da reunião de um bando de meninas na faixa de sete a dez anos, saudosas de suas famílias, amparadas pelas monitoras e chefes bandeirantes e pelo sentimento de amizade compartilhado em grupo. Parecíamos irmãzinhas, apesar das diferenças étnicas, abrigadas numa grande casa, unidas e aconchegadas do frio da solidão
Do acantonamento, tenho gravado na minha memória a dormida no colchonete com cheiro de xixi dos meus irmãos menores, até então disfarçado, mas agora evidenciado pela chuva do caminho. Os recursos da cidade, naquele tempo, não contemplavam uma loja de espuma para a construção do meu "sleepy". Assim, fabricado as pressas por mamãe, com vários cobertores de lã dobrados e forrados por um tecido de mescla azul, como todo o enxoval, era bastante acolhedor e permitia que fosse enrolado sobre si mesmo formando um rolo que amarrado por fitas do mesmo tecido, podiam ser colocados em um saco que ficava nas costas junto com os outros apetrechos.
As refeições eram um destaque a parte. Recebíamos nossas rações generosas e saudáveis, com muitos legumes, sem reclamar, pois depois as escondidas trocávamos umas com as outras de acordo com as nossas preferências. O certo é que após tantas atividades e tanta cumplicidade, não sobrava nada nos pratos de alumínio com nossos nomes marcados.
A semana do acantonamento passou como num sonho e guardo esta impressão até hoje (cala a boca, mais de 50 anos depois). A minha expectativa estava toda concentrada na volta para Paulo Afonso, quando o pau de arara pararia em Alagoinhas e eu finalmente conheceria, ou melhor reconheceria minha avó Amélia. Finalmente, fim dos dias de acantonamento fizemos pé na estrada que o caminho era longo.
Para não pular muito, o caminhão que nos serviu de transporte tinha um lastro de areia, forrado por um lona verde cedida pelo exército. Deitada no lastro, cabeça protegida pelo meu colchonetecomcheirodexixi deixei que meu coração batesse forte ansiando aquele encontro. O mais próximo que eu conhecia de uma avó, era Delinha, que na verdade era minha tia e madrinha e que com Mindinha compartilhavam da minha paixão. Eu precisava conhecer, saber como era ter uma avó!
Finalmente o encontro. Apressado por causa do tempo, abraços e beijos rápidos e uma grande lata dourada com flores que me foi entregue por aquela senhora dos olhos doces e puxados de índia e os cabelos esbranquiçados, ralos e lisos amarrados num coque na base do pescoço.
Sobe no pau de arara, pega a estrada de novo e enquanto eu tentava me consolar da brevidade do encontro, dei por mim que estava abraçada com a lata dourada com rosas vermelhas a única evidência que eu não tinha sonhado e que tinha estado verdadeiramente com minha avó Amélia.
Fiquei olhando para a lata, como se tivesse medo que ela evaporasse como o momento do encontro e quando levantei a vista encontrei com mais sete pares de olhos das minhas companheiras de aventura, ansiosas para saber que tesouro tinha ali dentro.
Abri a lata devagar e fiquei encantada com a visão dos sonhos dourados, cobertos de açúcar e canela que minha avó tinha feito para mim. Maravilhada pela beleza dos sonhos crocantes e dourados, por um momento pensei em egoisticamente fechar a lata e só comer quando chegasse em casa, com os meus irmãos. Mas uma boa fada não pode ser egoísta, tem que pensar no bem comum.
Mesmo contrafeita, dei um a cada uma das companheirinhas e tirei um para mim, o qual comi bem devagarzinho, como se quisesse eternizar o momento com a minha avó. Boa ação feita, fechei cuidadosamente a lata e a mantive bem apertada ao meu coração por todo caminho de volta.
O saborear destes sonhos deixaram uma impressão tão forte que até hoje, quando vejo doces cobertos de açúcar e canela, a lembrança que me vem à memória é o rosto da minha avó Amélia.
Cheiros