O Olho Precoce

Ainda menino eu já colava pedaços da Europa e da Ásia em grandes cadernos. Eram fotografias de quadros e estátuas, cidades, lugares, monumentos, homens e mulheres ilustres. Meu primeiro contato com um futuro universo de surpresas. Colava também fotografias de estrelas e planetas, de um ou outro animal, e muitas plantas.

Cedo começou minha fascinação pelos dois mundos, o visível e o invisível. E não escreveu São Paulo que este mundo é um sistema de coisas invisíveis manifestadas visivelmente? Não vivemos inseridos num contexto de imagens e signos?

Confesso que uma boa parte desta minha incipiente diligência cultural baseava-se no interesse pela mulher, que remontava a tempos recuados da minha infância. Não me contentando em ver mulheres no meu ambiente, queria ainda ter ao menos imagens fotográficas de mulheres de outros países e outras épocas. Tratava-se não somente da fascinação pela mulher nua ou seminua, embora estas freqüentassem minha imaginação: era a mulher na variedade dos seus tipos, sua forma, sua indumentária. Um relevo especial mereciam as fotografias de cantoras, artistas dramáticas vestidas à grega, à romana, à oriental e à moda do Império. Lamentava também que a fotografia tivesse sido inventada tão tarde. Como seria por exemplo Ruth? Raquel? Semíramis? A rainha de Sabá? Cleópatra?

Cedo atraíam-me as esfinges, as gárgulas, as medusas, as máscaras, as mascarilhas, as gigantas, as figuras de proa, as demônias, as participantes das metamorfoses de Shiva ou Vishnu, as sacerdotisas; paralelamente às pessoas em carne e osso, via figuras e pessoas míticas.

O prazer, a sabedoria de ver, chegavam a justificar minha existência. Uma curiosidade, inextinguível pelas formas me assaltava e me assalta sempre. Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver, rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida.

MURILO MENDES

Sobre o autor:

Um dos maiores poetas brasileiros, Murilo Mendes nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1901. Foi professor de cultura brasileira na Universidade de Roma. Faleceu em 1975, em Lisboa.

Murilo Mendes
Enviado por Augusto Matos em 22/07/2013
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