Um tio divertido*
[Na época] em que vivia com a vó Cema, o tio Mário possuía uma bela figura, era solteiro e retornara de São Paulo com uns modos elegantes, tipo conquistador, metido a galã italiano, costeletas avantajadas, o primeiro botão da camisa sempre aberto, peitão cabeludo à mostra, glostorado, perfumoso. Meio filhinho da mamãe, gostava de ser pajeado e não tinha muita paciência com a sobrinhada que rodeava a casa da vó Cema. Todo santo dia, à tarde, quando chegava do trabalho, ficava lá no alpendre, no bem-bom, só na maciota, fazendo hora pra tomar o banho. E como a serpentina há muito não funcionava, a vó é que punha o caldeirão no fogão de lenha, esquentava uma água pelando e preparava a bacia; depois, algum sobrinho tinha de lhe esfregar as costas e trazer-lhe toalha e roupa, que ele gostava de ser chaleirado. Mas a desforra vinha aos sábados à tardinha, depois do jogo de malha, na hora em que ia caprichar na feitura da barba, pois, com a cara ensaboada pouco podia fazer — só xingar e prometer surras. Enquanto estava ocupado, afiando num pedaço de pita a navalha que fora do vô Miguel, a meninada — e eu no meio da turma — gritava: Ô marreta! Ô esfola-caras! apelidos que o deixavam furibundo. Por conta disso, às vezes, corria atrás da gente com uma longa vara de amoreira a nos bater nas pernas peladas, que as calças-curtas deixavam desprotegidas.
Demorou muito pra se casar, porque havia pisado em rabo de gato, vó Cema dizia, mas, depois que a vó fez promessa pra São Gonçalo (Meu bondoso São Gonçalo/Eu vos ponho toda fé/Tenho roupa, tenho casa/Só me falta uma mulher), tio Mário se casou e sossegou o facho, pois que a tia Léia trazia ele num cortado. Depois disso, ele se revelou um tipo engraçado que, nos seus modos estentórios, gostava de contar casos, desferir adágios mordentes, discutir política e divertir a sobrinhada com borrachices, exagerações e batateiras sem conta. Vivia propondo adivinhas (O que é o que é? Que morre em pé?) ou contando mentiras cabeludas, como a história do sapo intanha-açu, tão grande que engolia os paralelepípedos que atiravam nele. Ele jurava que fora testemunha do caso, mas a gente sempre dava um desconto, pois achava o tio Mário um inventeiro meio bento, meio exagerado, quando contava essas leréias...
Na época da campanha do Jânio à presidência, gostava de exibir a vassourinha, distribuir volantes e recitar os versos populares que, então, corriam o País, mas na versão adaptada que ficou famosa em Aguinhas:
Se na cobra nascer asa/na galinha nascer dente;/(...) se o
trem da Rede Mineira aqui chegar pontualmente;/ (...) se
o José Lobo gastar um tostão que não lamente;/(...) Não
duvide, meu amigo, Lott será presidente.
Essa foi a última vez que vi meu tio ter animação com a política; dali pra frente só decepção! Até as atroadas de foguetes pós-eleições contra os adversários políticos foram perdendo sentido. E o golpe final se deu quando ele assistiu àquele povão fazendo cada fila do tamanho do mundo, na campanha do Ouro para o Bem do Brasil, pra doar anéis, alianças, pulseiras (“que joias de família nem os batutas que marcharam com Deus pela liberdade deram não, senhor!”), trocando peças de algum valor por uma aliança de metal roscofe timbrada com a inscrição “Legionários da Democracia”, balançou a cabeça desconsolado: Povinho duma figa! Nem errando aprende que nem tudo que brilha é ouro!
Ô, Toninho, vai chover, ele olhava pro céu e dizia. Por que, tio? É que a minha frieira tá coçando, respondia, dando risadas a mais não poder. No Primeiro de Abril aprontava com todomundo! E se alguém se coçasse perto dele, saía motejando: É pulga ou muquirana? Sai pra lá fiote-de-cruz-credo! que de mamando a caducando dessas pragas ninguém escapa!
Pra ele era primeiro a obrigação, depois a devoção, mas, quando fiz cinco anos, foi o meu padrinho de crisma. E então tive de beijar o eminentíssimo reverendíssimo anel do bispo, que veio da Diocese de Campanha especialmente pra cerimônia, e todo maçado e impaciente, lançava um mortiço olhar para a interminável fila de crianças... Mas beijei de longe, pois que tio Mário me advertira: — Vê se não encosta a boca no anel, que pode pegar boqueira! E assim, com o poder dos santos óleos, foi que me tornei um católico mais completo. Agora só falta a primeira comunhão, vó Cema me doutrinou.
Pedreiro caprichoso, incomparável assentador de azulejos, lido e corrido em traçar plantas de casa, pensando grande, tio Mário, que vivia dizendo que mais vale a prática do que a gramática, se deu mal, pois tentou muito e jamais conseguiu patentear, em face da burocracia e dos custos, sua invenção para o acabamento de telhados, uma certa telha-encaixe que facilitava os recortes e o remate das bordas e cumeeiras.
Tio Mário e Antônio Miguel (Dilinho), seu filho, no Parque Novo (1969)
Durante muitos anos, às escondidas da tia Léia, economizou um dinheirinho para realizar um sonho. Um dia apareceu com uma fubica, comprada na bacia das almas — uma TL amarela, velhíssima, que só andava de primeira e segunda. Mas esse carro foi seu gosto — e desgosto, pois só vivia em oficina, até que não andou mais e apodreceu lá na porta de sua casa. É, tio Mário, a jabiraca agora só serve pra plantar flor, a gente provocava. Mas ele era um número! Não ligava e também entrava no clima da gozação, rindo-se de si mesmo: É... urubu quando ‘stá de enguiço até pra cagá descadera!
Tio Mário gastou-se antes do tempo, à força dos dois expedientes que cumpria — colher, marreta e talhadeira nas funções de pedreiro durante o dia; esquadros, nanquim e papel vegetal nos riscos de plantas durante a noite — e dos maços diários de mata-ratos sem filtro, um racha-peito de marca conhecida que fumou até à morte. (O Mário anda sempre tossindo, devia de fazer uma abreugrafia, vó Cema vivia martelando...)
E morreu dizendo o diacho da corrupção, espinafrando os políticos e apostando comigo que o homem não pisara a lua, que aquilo tudo era encenação dos americanos.
Para o tio Mário, que nos ensinou a ser bem-humorados.
[Na época] em que vivia com a vó Cema, o tio Mário possuía uma bela figura, era solteiro e retornara de São Paulo com uns modos elegantes, tipo conquistador, metido a galã italiano, costeletas avantajadas, o primeiro botão da camisa sempre aberto, peitão cabeludo à mostra, glostorado, perfumoso. Meio filhinho da mamãe, gostava de ser pajeado e não tinha muita paciência com a sobrinhada que rodeava a casa da vó Cema. Todo santo dia, à tarde, quando chegava do trabalho, ficava lá no alpendre, no bem-bom, só na maciota, fazendo hora pra tomar o banho. E como a serpentina há muito não funcionava, a vó é que punha o caldeirão no fogão de lenha, esquentava uma água pelando e preparava a bacia; depois, algum sobrinho tinha de lhe esfregar as costas e trazer-lhe toalha e roupa, que ele gostava de ser chaleirado. Mas a desforra vinha aos sábados à tardinha, depois do jogo de malha, na hora em que ia caprichar na feitura da barba, pois, com a cara ensaboada pouco podia fazer — só xingar e prometer surras. Enquanto estava ocupado, afiando num pedaço de pita a navalha que fora do vô Miguel, a meninada — e eu no meio da turma — gritava: Ô marreta! Ô esfola-caras! apelidos que o deixavam furibundo. Por conta disso, às vezes, corria atrás da gente com uma longa vara de amoreira a nos bater nas pernas peladas, que as calças-curtas deixavam desprotegidas.
Demorou muito pra se casar, porque havia pisado em rabo de gato, vó Cema dizia, mas, depois que a vó fez promessa pra São Gonçalo (Meu bondoso São Gonçalo/Eu vos ponho toda fé/Tenho roupa, tenho casa/Só me falta uma mulher), tio Mário se casou e sossegou o facho, pois que a tia Léia trazia ele num cortado. Depois disso, ele se revelou um tipo engraçado que, nos seus modos estentórios, gostava de contar casos, desferir adágios mordentes, discutir política e divertir a sobrinhada com borrachices, exagerações e batateiras sem conta. Vivia propondo adivinhas (O que é o que é? Que morre em pé?) ou contando mentiras cabeludas, como a história do sapo intanha-açu, tão grande que engolia os paralelepípedos que atiravam nele. Ele jurava que fora testemunha do caso, mas a gente sempre dava um desconto, pois achava o tio Mário um inventeiro meio bento, meio exagerado, quando contava essas leréias...
Na época da campanha do Jânio à presidência, gostava de exibir a vassourinha, distribuir volantes e recitar os versos populares que, então, corriam o País, mas na versão adaptada que ficou famosa em Aguinhas:
Se na cobra nascer asa/na galinha nascer dente;/(...) se o
trem da Rede Mineira aqui chegar pontualmente;/ (...) se
o José Lobo gastar um tostão que não lamente;/(...) Não
duvide, meu amigo, Lott será presidente.
Essa foi a última vez que vi meu tio ter animação com a política; dali pra frente só decepção! Até as atroadas de foguetes pós-eleições contra os adversários políticos foram perdendo sentido. E o golpe final se deu quando ele assistiu àquele povão fazendo cada fila do tamanho do mundo, na campanha do Ouro para o Bem do Brasil, pra doar anéis, alianças, pulseiras (“que joias de família nem os batutas que marcharam com Deus pela liberdade deram não, senhor!”), trocando peças de algum valor por uma aliança de metal roscofe timbrada com a inscrição “Legionários da Democracia”, balançou a cabeça desconsolado: Povinho duma figa! Nem errando aprende que nem tudo que brilha é ouro!
Ô, Toninho, vai chover, ele olhava pro céu e dizia. Por que, tio? É que a minha frieira tá coçando, respondia, dando risadas a mais não poder. No Primeiro de Abril aprontava com todomundo! E se alguém se coçasse perto dele, saía motejando: É pulga ou muquirana? Sai pra lá fiote-de-cruz-credo! que de mamando a caducando dessas pragas ninguém escapa!
Pra ele era primeiro a obrigação, depois a devoção, mas, quando fiz cinco anos, foi o meu padrinho de crisma. E então tive de beijar o eminentíssimo reverendíssimo anel do bispo, que veio da Diocese de Campanha especialmente pra cerimônia, e todo maçado e impaciente, lançava um mortiço olhar para a interminável fila de crianças... Mas beijei de longe, pois que tio Mário me advertira: — Vê se não encosta a boca no anel, que pode pegar boqueira! E assim, com o poder dos santos óleos, foi que me tornei um católico mais completo. Agora só falta a primeira comunhão, vó Cema me doutrinou.
Pedreiro caprichoso, incomparável assentador de azulejos, lido e corrido em traçar plantas de casa, pensando grande, tio Mário, que vivia dizendo que mais vale a prática do que a gramática, se deu mal, pois tentou muito e jamais conseguiu patentear, em face da burocracia e dos custos, sua invenção para o acabamento de telhados, uma certa telha-encaixe que facilitava os recortes e o remate das bordas e cumeeiras.
Tio Mário e Antônio Miguel (Dilinho), seu filho, no Parque Novo (1969)
Durante muitos anos, às escondidas da tia Léia, economizou um dinheirinho para realizar um sonho. Um dia apareceu com uma fubica, comprada na bacia das almas — uma TL amarela, velhíssima, que só andava de primeira e segunda. Mas esse carro foi seu gosto — e desgosto, pois só vivia em oficina, até que não andou mais e apodreceu lá na porta de sua casa. É, tio Mário, a jabiraca agora só serve pra plantar flor, a gente provocava. Mas ele era um número! Não ligava e também entrava no clima da gozação, rindo-se de si mesmo: É... urubu quando ‘stá de enguiço até pra cagá descadera!
Tio Mário gastou-se antes do tempo, à força dos dois expedientes que cumpria — colher, marreta e talhadeira nas funções de pedreiro durante o dia; esquadros, nanquim e papel vegetal nos riscos de plantas durante a noite — e dos maços diários de mata-ratos sem filtro, um racha-peito de marca conhecida que fumou até à morte. (O Mário anda sempre tossindo, devia de fazer uma abreugrafia, vó Cema vivia martelando...)
E morreu dizendo o diacho da corrupção, espinafrando os políticos e apostando comigo que o homem não pisara a lua, que aquilo tudo era encenação dos americanos.
Vocabulário de Aguinhas
Batateira: Conversar coisas sem importância, falar bobagens.
Bento: Mentiroso.
Boqueira: Pequena ferida nos cantos da boca, que à época se acreditava ser contagiosa.
Estentório: Que tem a voz muito forte.
Glostorado: Com brilhantina no cabelo. [Refere-se à antiga brilhantina da marca Glostora.]
Fubica: Automóvel antigo e muito estragado.
Jabiraca: Carro velho. Por ext. Mulher velha e feia. [Gíria ocorrente em Aguinhas.]
Lido e corrido: Sujeito conhecedor e experiente em alguma coisa.
Mata-ratos: cigarro ordinário.
Muquirana: Piolho-de-pele.
Num cortado: “Trazer num cortado”, isto é, vigiado com muita atenção e ciúme.
Roscofe: De qualidade inferior, ruim.
Miguel Arcanjo dos Santos (Lobo) e Iracema Gentil Lobo tiveram seis filhos: Messias, Rubens, Mário, Sara, Maria José e Neli.
Minha mãe Neli, a caçula, com 80 anos, e meu tio Rubens, o segundo, com 88 anos, ainda se encontram entre nós.
(*) Esta narrativa faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960.
O livro é de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.
Batateira: Conversar coisas sem importância, falar bobagens.
Bento: Mentiroso.
Boqueira: Pequena ferida nos cantos da boca, que à época se acreditava ser contagiosa.
Estentório: Que tem a voz muito forte.
Glostorado: Com brilhantina no cabelo. [Refere-se à antiga brilhantina da marca Glostora.]
Esfola-caras: Barbeiro ruim, que não sabe fazer barbas.
Fiote-de-cruz-credo: Pessoa feia, desajeitada.Fubica: Automóvel antigo e muito estragado.
Jabiraca: Carro velho. Por ext. Mulher velha e feia. [Gíria ocorrente em Aguinhas.]
Lido e corrido: Sujeito conhecedor e experiente em alguma coisa.
Mata-ratos: cigarro ordinário.
Muquirana: Piolho-de-pele.
Num cortado: “Trazer num cortado”, isto é, vigiado com muita atenção e ciúme.
Roscofe: De qualidade inferior, ruim.
Miguel Arcanjo dos Santos (Lobo) e Iracema Gentil Lobo tiveram seis filhos: Messias, Rubens, Mário, Sara, Maria José e Neli.
Minha mãe Neli, a caçula, com 80 anos, e meu tio Rubens, o segundo, com 88 anos, ainda se encontram entre nós.
(*) Esta narrativa faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960.
O livro é de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.