Bordão

– No meu tempo ninguém adoecia.

E foi assim que eu gargalhei, internamente para não magoá-la, da sua ingenuidade. Era uma velhinha simpática. Estava no ponto de ônibus junto comigo, à mercê da sorte de passar um ônibus que atendesse ao nosso destino. O tempo de espera que castiga os moradores dos grandes centros urbanos foi suficiente para uma inesperada conversa.

Apontava-me as direções aonde na época de sua chegada à cidade aquilo ali nem era cidade ainda. Só se via mato. E me espantava com as suas descrições. Era difícil imaginar a minha movimentada rua ter sido há tão pouco tempo um local ocupado por vacas.

Foi devido a essas recordações e outras, trazidas também por outros assuntos já emendados, que ela acabou soltando uma frase, próximo a um bordão da terceira idade:

– No meu tempo era diferente.

Não fiquei surpreso. Já sentia que a conversa ia descambar para esta afirmação saudosista. Ela já tinha relembrado como antigamente as pessoas sentavam na frente das casas para conversar. Pessoas se cumprimentavam nas ruas. Homens tiravam o chapéu em saudação a outros. O que eu não esperava era a constatação daquela senhora acerca dos viventes de sua época não serem acometidos das mesmas chagas do século XXI.

– Eu só fui ter gripe depois dos 18. Naquele tempo não tinha essas doenças tudo que tem hoje. Os meninos fracos, tudo doente...

Sem conseguir esconder o sorriso tentei explicá-la que, a exceção de algumas poucas como a AIDS, nenhuma doença era nova, todas sempre existiram. As pessoas só não sabiam bem o que eram. Argumentos sem muito êxito, pois em seguida ela começou a culpar a alimentação, não perdoando nem mesmo as frutas. Porque as frutas da sua época eram muito melhores. As frutas hoje já saem fracas dos pés. E falou-me do tempo da sua infância, no qual vivia numa pequena cidade.

– A gente comia fruta direto do pé, assim ó – e encenava com suas mãos como se estivesse deliciando-se com uma manga, ali mesmo na minha frente.

Não resisti e fantasiei-a jovem, pés descalços, esticando o pescoço e colhendo uma fruta na árvore sem usar as mãos, tal qual uma girafa na savana africana.

Talvez provocando, perguntei:

– Então a senhora está me dizendo que as frutas de hoje são diferente das de antes? – falei tentando parecer que esta afirmação não fazia qualquer sentido.

– São 100% piores! – ela rebateu minha soberba.

Por um segundo convencido imaginei-me comendo frutas sintéticas.

Quando voltei a si a conversa já tinha tomado outro curso. Logo fiquei pensando o porquê de todas essas impressões daquela senhora. Era lúcida e afirmava com muito vigor, bem certa da sua razão.

Ao tentar imaginá-la jovem, lembrei-me que também ficaria velho. Tal destino não me escaparia. Pensei se um dia também não soltaria aquele bordão provocando o riso de algum jovem. O que me levaria a lembrar dos tempos passados como épocas melhores? Por que ver nos dias atuais tamanha decadência? Conclui triste que talvez fosse devido ao caminho que a vida se aproximava, com um horizonte apontando doenças, corpo decrépito e morte. Tudo havia se acabado: a juventude, o vigor, o tempo a perder de vista. Não há preocupações quando se é jovem. Há tantos “amanhãs” que nem é preciso contá-los. Então tudo é belo e fácil. Estava certo que também compartilharia daquele delírio saudosista da velhinha simpática.

Quando acordei, ela se encaminhava para pegar seu ônibus. Eu não iria naquele. Acenou-me, já distante. Desejei ter um chapéu para responder ao cumprimento.