SOB O VÁCUO DAS AMPUTAÇÕES
Não fazia muito tempo que eu ( e novamente!) havia me mudado.
Mudanças...as tantas que sempre acontecem com todo mundo.
Há várias mudanças tão inevitáveis em várias circunstâncias do tempo que nos outorgam a mudar nossos rumos da vida da noite para o dia, e muitas vezes empacados como um jumento teimoso, porque não nos damos conta dos relógios, são certas mudanças nos impelem a novos planos, projetos, e quebram nossas crenças e mitos sobre nós mesmos.
Há também aquelas mudanças bem definidas que conosco conversam bem lá no íntimo a nos constatar a extinção de mais um ciclo de vida.
Então, eu e o entorno já havíamos mudado muito, algo bem distintamente da maioria das minhas outroras pontuais mudanças justamente depois de concluir o cansaço duma longa missão cumprida.
Assim, depois de vinte e cinco anos saí de lá com algumas lembranças saudosas, poucas das quais acredito que ficarão para sempre, sendo a mais significante delas o canto daquele Bem-te-vi que igualmente a mim, embora ainda cantasse pontualmente sua missão de todos os dias, certa vez teve que se mudar do se habitat tão derepentemente amputado terreno abaixo, em pleno cumprimento do seu dever de ainda ali solfejar versos para eu ouví-lo todas as manhãs bem ao alto da minha janela.
Certo dia, descrevo que na calada da noite, seu eucaliptal foi vítima duma motoserra tão afiada que em minutos sedimentou sem piedade nossos muitos anos ali cantados e degustados juntos, que amputados se mesclaram ao insípido chão de terra batida.
Choramos juntos.
Só sobraram os seus ecos na minha memória emotiva.
Ali, descobrimos que éramos de existência e destinos algo simbióticos, porque tenho comigo a certeza de que aquele passarinho também já cumprira sua missão de ali cantar, todavia, continuaria esguelando sem parar não fosse a traiçoeira e impiedosa motoserra da vida.
Então, cheguei ao meu novo local de destino, porque há missões tão profundamente sagradas de vida que sequer a maior força das motoserras inanimadas são capazes de as amputarem...apra sempre.
Ali , com alegria compartilhada, senti que fui recebida pelos braços abertos e carinhosos dum gigante flamboyand, já bem senil, que arrastava suas raízes gigantes exofíticas pelo solo, já debruçado pelo cansaço no muro do vizinho, mas que furioso nunca entendeu sua existência majestosamente florida e carinhosa.
Cumprimentamo-nos e mal me houve tempo desfrutar da cor de sua próxima florada, então recolhida ao presente inverno.
No dia seguinte, quando cheguei para conversarmos sob a sombra da sua exuberância ecológica, só pude enxergar o toco da sua frondosa raiz sangrante que havia sido amputada poucas horas antes da sua última madrugada orvalhada.
Fiz-lhe uma oração pela sua e por tantas outras sangrantes amputações tão inesperadas: as que nos amputam até a chance do entendimento do ser.
Naquele segundo o meu Bem-te-vi de dantes subitamente veio de longe e nos cantou bem ao alto o seu enebriante canto sob mais um vácuo de todas as nossas amputações...
Nota do autor: dedico essa crônica a todos os fatos verídicos que recentemente vivi. Que essa cronica ilustre todas as futuras mudanças, as destinadas a todos nós.