Naquele dia.

Eu trabalhava numa livraria, uma livraria simples, mas, não muito parada. Livraria de meu avô. Que já não tinha mais idade pra ficar ali. Todos os dias, no mesmo horário, chegava uma guria, alta, não muito magra, olhos claros, pele clara, cabelos bem escuros, brilhavam na luz. Ela não olhava pra ninguém. Entrava, escolhia em média três ou quatro livros, e sentava no ponto mais distante dali. Eu não me importava que ela os lesse, ela não incomodava ninguém. Estava sempre calada. Eu acho que ali era seu refúgio. Eu já a vi chegar chorando em silêncio, chegar sorrindo, chegar desanimada. Já a vi chegar de todos os jeitos. Mas ela sempre calada. As vezes ela se desconcentrava lendo, então ela colocava os fones de ouvido, e ficava olhando pro nada, ou rabiscando um papel. Pensei em ir falar com ela alguma vezes, mas ela parecia não querer ser incomodada. Ela ficava ali por horas, e horas. E uma coisa que me chamava muito a atenção, era que ela estava sempre com um casaco ou uma blusa de manga comprida. Um dia de muita chuva, céu escuro. Parecia de noite, mas não eram nem duas ta tarde, ela entrou, o sininho da porta da loja tocou, e eu me levantei. Ela estava molhada, sentou em seu canto, e eu fui falar com ela.

- Com licença.

- Sim? - Ela me olhou, eu via dor ali.

- Tais toda molhada, guria. Quer uma toalha? - Ela sorriu, e fez que não com a cabeça. Eu sentei em sua frente, ela havia abaixado a cabeça e escondido os braços. N’aquele dia, ela estava sem casaco.

Esperei um instante e disse:

- Ei, pequena, qual o seu nome?

- Me diga o seu.

- Matthew. Me chame de Math. E o teu? - Ela sorriu.

- Então, Math, por que esse interesse em meu nome?

- Ai, ai, menininha - eu sorri. - Vai me dizer ou não?

- É Gabrielle. Mas me chame de Gabi.

- Gabi. Tens quantos anos, menina?

- Acabei de lhe dizer meu nome, e me chamas de menina?!

- Ah, ok. Gabi - disse enfatizando o nome dela. - Tens que idade?

- Sou nova.

- Tais de brincadeira com minha cara, menina?! Diga-me logo.

- Idade suficiente para amar e sofrer - Ela abaixou o rosto, que já não estava tão levantado.

Eu suspirei, olhei-a, esperando que reagisse. Ela olhou pro lado. Então eu levantei. Tranquei a loja, e fechei as cortinas. Ficou tudo escuro. Cheguei perto dela, ainda molhada, levantei-a, coloquei seu cabelo atrás da orelha, beijei sua testa, e abracei-a. Depois, levei ela pra atrás de meu balcão, ficamos ali, muito tempo, eu calado e ela chorando. Eram cinco da tarde quando ela, ainda em meio ao choro começou a dizer:

- Tenho quinze anos, e os ultimos três foram os mais difíceis. Eu comecei a ter problemas em casa, comecei com os cortes, e amei um guri que não se importava com nada. Sei que isso parece bobo, e que muitas pessoas em situações piores dariam a vida pra ficar um dia no meu lugar. Mas aqui dentro dói. É muita pressão, muita gente que não se importa. Pessoas falsas. Eu sou sozinha, e… - Ela desabou em lagrimas e eu abracei-a.

Ficamos ali, abraçados, sentados no chão gelado da loja, enquanto ela tentava conter o choro. Refleti sobre tudo o que ela me disse. Passei para frente dela, enxuguei suas lágrimas, mas outras tomaram o lugar, beijei a bochecha dela e sorri.

- Chora não, pequena. Tem quem te ame por ai.

Lembrei que ela havia me dito dos cortes, segurei os braços dela e os olhei. Haviam cortes recentes de poucas horas atrás. Talvez de antes d’ela chegar ali. Talvez por isso ela havesse vindo na chuva. Ela estava desesperada. Senti um aperto no peito e beijei seus braços. Abracei-a com toda minha força e comecei a chorar também.

Ela engoliu o choro e me apertou. Secou minhas lágrimas e as dela. Que babaca eu sou. Idiota, eu não deveria estar chorando, não devia.

- Math, chora não - ela sorriu, tão lindo o sorriso dela.

- Desculpa, desculpa por estar assim, chorando. Eu deveria estar forte pra você.

- Não, Math, Não. Ninguém é forte o tempo todo, e eu… bem, raras as vezes q eu sou forte.

Ela sorriu, mas dessa vez, bem menor. Uma espécie de sorriso torto, um deboche da própria dor. E eu parei de chorar, sorri, e novamente beijei sua bocheca. Ela encostou a cabeça em meu peito, e ali ficamos. Lá pra umas nove horas olhei o relógio.

- Tá tarde.

- Tem que ir embora?

- Pra falar a verdade, não. E você?

- Eles não sentirão minha falta.

- Gabi, - eu hesitei - posso te falar uma coisa?

- Pode sim.

- Todos os dias, tu chega aqui, lê uns livros, chora, ri, pensa e escreve. Eu passei dois anos te observando, tudo o que você fazia. Eu sempre tive vontade de ir falar contigo, de te abraçar quando você chorava, te proteger. Sempre quis te cuidar. Nunca tive coragem de ir falar contigo, aqui sempre tinha mais gente. Hoje realmente foi meu dia de sorte. Você chegou, e não tinha mais ninguém. Era só eu e você. Minha chance perfeita. A chance de eu te conhecer.

Ela sorriu. Ela sorriu? Por que ela sorriu? Ela não devia ter sorrido. Não sei o que ela devia ter feito, mas sorrir é que não era. Deitei no chão, meu coração parecia que ia saltar pela boca. Ela veio por cima de mim, e me beijou. Depois d’aquele, vieram muitos outros e outros. Nos amamos a noite inteira.

Hoje em dia, nos amamos todas as noites. Tem os desentendimentos, mas eu a amo. E ela me ama. Quase quinze anos depois daquele sábado cinzento, triste e chuvoso. Nos amamos.

Anna Clara Bispo
Enviado por Anna Clara Bispo em 20/07/2013
Código do texto: T4395882
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