O GAROTO LINGUIÇA DEFUMADA
Hoje acordei cedo fiz aquelas coisas que todos fazem, matei o banho, um café reforçado e depois estudei um pouco.
A chuva que caia preguiçosamente lá fora havia enchido e transbordara o pote da comida dos gatinhos invasores do pátio e isto era um mal sinal, não para mim, mas para eles, gatos dificilmente passeiam pela chuva, então ninguém estava precisando de mim. O remorso começou a me corroer, pois havia enforcado o banho, então passei a buscar álibis para tal delito e rapidinho surgiram tantos, que voltei a deitar para melhor organiza-los.
Embora acordado o barulho gostoso dela me deixava inerte, então eu me livrara do remorso e me vingara das tantas vezes que tive que enfrentá-la nas manhãs frias e chuvosas de inverno.
O enfrentamento nem sempre é de igual para igual, e quase sempre desleal, não usávamos armas, só escudos, na forma de capas ou guarda-chuvas. Na criancice e parte da adolescência o escudo vinha em forma de capas de náilon, que rapidamente se tornavam permeáveis e mal cheirosas. Já no final da adolescência, como militar, o uso de guarda-chuvas era pecado mortal e poderia render um castigo severo e só depois, muito depois o uso de guarda-chuvas foi permitido aos militares.
Contam os corredores, que durante uma chuva forte o General apanhou o utensílio e o ajudante correu a avisá-lo, que não podia, pois se constituía em transgressão e a autoridade de imediato determinou ao assessor que providenciasse na mudança do regulamento. Nunca houve proibição e sim um excesso de preciosismo por parte dos militares, pois os regulamentos proibiam que fossem apostos sobre os uniformes, qualquer peça que não estivesse prevista nos manuais e justamente ai se agarravam os superiores ao tempo, tratando os guarda-chuvas de peça. A solução foi inserir no regulamento de uniformes o guarda-chuvas, mas não saiu barato, pois deveria ser nas cores preta, ou da farda.
Hoje há uma coleção de acessórios destinados à proteção em dias chuvosos, alguns funcionais, outros funcionais e belos e os não belos e também não funcionais, roupas impermeáveis, destinadas aos motociclistas e policiais. Esta fartura nem sempre está ao alcance de todos, por falta de dinheiro ou pela surpresa e então quando chove alguns motociclistas circulam com sacolinhas plásticas revestindo os pés.
Passados mais de quarenta anos parece que os invernos de nossa criancice eram intermináveis, chuva após dia e um único calçado poderia render alguns desconfortos psicológicos ou físicos. De um dia para o outro o sapato tinha de estar seco e a solução era coloca-lo no forno do fogão a lenha, quando o fogo já havia se extinguido e então o morninho se encarregaria de pô-lo em condições na manhã seguinte. Um pouco mais de calor e o couro ressecava produzindo bolhas e até calos. Um dia uma colega de convívio dos quatro anos de ginásio pergunta quem estava cheirando a linguiça defumada, todos me olharam e logo percebi, que era eu, a concordância acompanhada de uma explicação rápida rendeu alguns olhares de piedade, nem tantos de menosprezo e alguns sorrisos, desta forma escapei de ser apelidado de linguiça defumada. Passado não muito tempo ganhei um par de galochas, um acessório de borracha que serve para cobrir o calçado e protegê-lo da água, que de certa forma chegou com atraso, os calos já estavam permanentes.