O Menino Monstro
Todo adulto guarda na memória, uma estória de terror. Um daqueles casos inexplicáveis que aumenta mais em detalhes macabros, toda vez que é recontado. Esse caso ocorreu comigo no Natal de 1985 e toda vez que todos começam a enfeitar as suas casas com as cores de natal, inevitavelmente lembrodo dia em que vi o Menino Monstro.
Eu tinha 12 anos, quando mudei para Cajazeiras, na Paraíba. Nessa idade, fazer parte de um grupo é uma questão de vida ou morte; ainda mais para um garoto que acabara de mudar para uma nova cidade e precisava ganhar a confiança dos “novos amigos”. Para ganhar o reconhecimento da turma, eu precisaria passar num teste de bravura e coragem. Se aceitasse, seria aceito por todos; se desistisse, o limbo juvenil me esperava.
O desafio era aterrorizador: eu teria que enfrentar o Menino Monstro.
Na rua da padaria do Janduí, havia uma casa que despertava a atenção de todos que passavam por lá. Em um dos quartos, havia grade na janela e de dentro do quarto, ouviam-se grunhidos e gritos terríveis que assustavam todo o bairro. Todas as pessoas que conhecia, evitavam passar por aquela rua; e os boatos corriam por todo o bairro que uma beata, devota de Frei Damião, tinh avisto no menino as marcas do coisa ruim e ela mesmo havia declarado a todos – “Esse menino só pode ser obra do cão!”
Eu só havia visto a casa uma vez e ainda lembrava dos gritos, por isso quando os meninos disseram que eu teria que entrar naquela casa; pensei seriamente em arrumar as minhas malas e voltar para a Brasília, onde o maior desafio que tinha enfrentado fora um campeonato de futebol de tampinha de garrafa. Ter uma vida social não valia o sacrifício, mas como a Eliana, a menina mais bonita do bairro, fazia parte do grupo e eu já não conseguia imaginar viver minha adolescência sem ela, aceitei o desafio.
Era noite, meus amigos ficaram vigiando a casa, até perceberem que os pais do Monstro haviam saído para a igreja. Por favor, levem em consideração que não éramos delinqüentes; a verdade é que escalar muros e invadir quintais eram uma arte a ser dominada quando se mora numa cidade do interior com quintais cheios de mangueiras, goiabeiras e pés tortos que miram no gol e acertam o quintal alheio. Pular o muro não foi sequer uma missão difícil, mas quando entrei na casa, confesso, que comecei a tremer sem parar. De acordo com os meninos, não bastava entrar na casa, eu precisava trazer uma prova que estivera cara-a-cara com o Menino Monstro e apesar de não ter a mais vaga idéia do que poderia ser utilizado como prova, invadi a casa pela porta do quintal ( por carência de ladrões, todos os habitantes da cidade, deixavam sempre abertas as portas e janelas de seus quintais)..
Um medo descomunal tomava conta de mim, á medida que eu entrava na casa. O suor caia da minha testa como se fosse as quedas do Iguaçu; a respiração estava ofegante e meu coração batia tão rapidamente, que senti que aqualquer momento ele sairia da minha boca e pularia o muro do quintal. Eu queria sair dali. Queria estar em casa, me preparando para a ceia de Natal e não naquele lugar enfrentando a morte. Queria fugir, mas havia Eliana e eu precisava continuar, não só por mim, mas por todos os adolescentes do mundo que passavam por aquele tipo de situação.
Então, ouvi a respiração do monstro bem perto de mim. Antes mesmo que eu pudesse pensar em fugir, notei uma sombra avançando sobre mim e me derrubando no chão.
- Deus me ajuda!!! – Gritei e fechei os olhos, esperando o pior. Nem tinha 13 anos ainda, queria tanto estar vivo para casar com a Eliana e para descobrir o que ocorreria com o Homem Aranha no seu próximo gibi. Imaginei cenas de filme de terror, as piores dores possíveis, mas nada ocorreu. Cauteloso, abri os olhos e vi á minha frente, apenas um menino um pouco maiorque eu, que tinha Síndrome de Down. Ele tinha um dos olhares mais doces que já tinha visto na vida e aos invés de palavras distorcidas de filme de Exorcista, ouvi sua voz meiga dizendo – Você veio brincar comigo?
Em Brasília, era comum ver os meninos com Down nas ruas, tendo vidas saudáveis e até jogando bola com o resto da meninada na rua, mas aparentemente em Cajazeiras, as famílias escondiam seus “meninos especiais” do resto da sociedade como se eles fossem realmente monstros.
A verdade é que não havia nada de monstruoso com aquele menino e se havia algum horror; algo fora do normal, era a maneira como ele era tratado não só por toda a vizinhança, mas também por seus pais.
Enquanto eu encarava a minha própria ignorância; ele me foi trazendo carros sem rodas, bolas murchas e outros tantos brinquedos quebrados que ele costumava brincar e repetia sem parar “que bom que você veio brincar comigo”.
Não fiquei brincando com ele, até gostaria, pois fiquei sensibilizado até o nível máximo que uma criança de 12 anos consegue atingir; mas meus amigos e Eliana estavam lá fora e eu ainda tinha que os impressionar com a fantástica história de como lutei com todas as minhas forças com o Menino Monstro e sobrevivi para contar. Aquele carrinho sem rodas era a prova que eu precisava para me tornar o herói mais covarde que já surgiu nos contos de fada do sertão.
Na noite de Natal de 1985, eu consegui amigos, fama e a admiração da menina mais linda da rua, mas antes mesmo da missa do galo, olhei-me no espelho e me dei conta que no final era eu, o Menino Monstro.