Retrato do cronista quando viaja
Vocês deviam ver um cronista se preparando pra viajar. Eu já disse que o turista é um bicho engraçado, mas o cronista é muito mais. Começa que ele compra um caderninho e enche de anotações preliminares, informações, curiosidades e frases sobre os lugares que irá visitar. Quer potencializar as experiências que irá ter e sobre as quais deseja escrever. E então ele começa a idealizar os textos que irá fazer. Até em alguns títulos ele já pensou! Não viu lugar nenhum ainda e já pensa nos títulos! Bicho engraçado, sô. Isso me lembra um personagem do John Fante (acho que é do John Fante. Se não for do John Fante, paciência. Perguntem ao pó). Pois o personagem está se afogando, quase morrendo, e no meio da luta para sobreviver pensa em como irá escrever sobre aquilo. Terríveis, os escritores.
A essa altura vocês já perceberam que o cronista que se prepara para viajar sou eu mesmo. De fato, estarei em férias por alguns dias. Tem uma citação ótima do Henfil sobre férias. Vocês conhecem o Henfil. Lembram da música da Elis? “Meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil”. Era o Betinho, o irmão do Henfil. Pois o Henfil foi viajar para China. E enquanto fazia uma escala na Europa, o Henfil fez a seguinte divagação:
“Agora, suponhamos que um chinês viesse aqui e, pela observação de sua maneira de viver, procurasse interpretar o european way of life. Diria ele quando voltasse pra China: o europeu é escravo do trabalho. Não lhes respeitam vocação ou potencial. Trabalha onde o mercado manda. Recebe uma quantia em dinheiro para comprar uma porção de coisas supérfluas. A parte que economiza ele gasta quando entra... numa fila imensa de carros na tradicional festa ocidental chamada weekend. Todo ano ele participa também de outra festa chamada férias. Fica um mês sem trabalhar e isto lhe causa muita angústia e um vazio enorme. Aí ele procura um cinema ou um teatro onde artistas contratados vivem para ele coisas essenciais como amor, sexo etc”.
Poxa, estou justamente participando da festa ocidental chamada férias – eu diria vacation. Mas tenho os meus direitos, e afinal nem será um mês inteiro, e nem sei ainda se irei a algum cinema ou teatro. Estou pensando em fazer como o Henfil, que nessa ida à China sequer foi ver a Muralha. Turismo alternativo. É outra das graças do cronista.
Tem mais uma coisa também. Essa não acontece só com os cronistas. Véspera de viagem, pelo menos para quem não costuma viajar, dá sempre vontade de encontrar todo mundo, se despedir, ouvir boas recomendações. Um dia eu disse que me sentia um pracinha indo para a Guerra. É mais ou menos assim. Quero me despedir das pessoas, declaro meu amor por todos. E o pessoal me diz pra avisar, mandar mensagem, assim que chegar. Ah, isso faz bem!
Tive vontade de me despedir inclusive daquela moça, caixa de restaurante, por quem cultivo uma suave afeição, e em cujos dedos (eu reparei bem) não há um mísero anel. Mas ela não sabe que vou viajar, nem notará minha falta, e mal perceberá meu retorno. Tudo bem, tudo bem. Mas saiba que nem a sua indiferença foi suficiente para impedir que eu te arrumasse um espacinho nesta crônica que era pra ser só sobre viagem.