Melindrar
Existem palavras que são gravadas na nossa mente no instante em que nascemos. A minha é ‘melindrar’. Com seis anos bati de frente com um coleguinha no jardim de infância, o nariz começou a jorrar sangue e minha mente só pensava na palavra “melindrar”. Nesse momento, não havia pai nem mãe para me consolar e a palavra bastou como abraço, carinho e consolo. Assim como não chorei no episódio do jardim, não chorei em outras situações da vida. ‘Melindrar’ me poupou muitas lágrimas até o dia em que passei em frente a um sebo (melindrando sozinho) e resolvi entrar. “Oi, bom dia! Como vai? Deseja qual livro? Estamos com diversas promoções!”. Calei-o com melindre. Queria apenas observar os livros na minha condição de menino bossal.
O esforço do funcionário era excessivo, já que a loja estava cheia devido à tal ‘promoção’.
Melindrando, procurei um canto mais reservado para observar a loja e os livros. Olhei, olhei e finalmente encontrei um corredor a esmo. O corpo negativo e o corredor positivo. Foi pura atração. Nesse momento minha mente não melindrava e a palavra se escondeu com medo, como quem sabe que algo vai acontecer. Olhei para o fim do corredor e vi uma placa indicando quais tipos de livros se encontravam ali, aproximei-me mais um pouco e pude ler: “Seção dos dicionários”.
A palavra saiu do meu corpo e se escondeu em algum canto obscuro da biblioteca. Já não me importava. Balancei a ponta dos dedos, fechei os olhos e comecei a passar a minha mão rapidamente por todos aqueles dicionários. Parei. O escolhido se encontrava na minha frente e tão logo que o peguei, o abri. Sabia em qual letra procurar e podia sentir o “melindrar” por trás das estantes, “Não faça isso amigo”, porém, não escutava essa suplica. A única perguntava que permeava minha mente era: “O que eu venho fazendo todos esses anos?”.
Abri na letra ‘m’ e procurei a resposta. O dicionário caiu no chão e logo em seguida o meu corpo. “Gente, o menino desmaiou!”, “Ai meu Deus, ele tá respirando?”, “Sai de cima! Ele precisa de ar”...
Acordei na cama do meu quarto com a empregada ao meu lado. Ela olhou para mim, apertou o terço contra o peito e foi ligar para alguém.
“Melindrar, verbo transitivo, significa ofender, magoar”. Aleguei cansaço para a empregada e fingi dormir. Assim que ela apagou as luzes, levantei-me e peguei papel e caneta:
“Querida amiga,
Fiz uma grande descoberta hoje! Descobri que significado de uma palavra no dicionário nem sempre é o significado de uma palavra na vida. Minha cabeça lateja e estou susceptível às lágrimas. Sinto falta de melindrar, por favor... Volte logo!”
Jogou a folha pela janela do quarto e de algum lugar de um sebo escuro, viu-se uma palavra tímida saindo das frestas. Virou a esquina e tomou um ônibus rumo ao coração de um jovem melindre.