Pornografia e Política
"Oh! Sejamos pornográficos
(docemente pornográficos)"
Carlos Drummond de Andrade
Estranhando meu silêncio diante do que está acontecendo no Brasil, o meu amigo Joaquim Sabetudo, irrequieto e inconformado, me telefonou.
O dia mal havia nascido, e ele, pelo celular: "Cadê suas crônicas, parceiro? Ainda não entendi o porquê de sua ausência, exatamente no momento em que o Brasil estrebucha como nunca estrebuchou em toda a sua história política mais recente.
Até a Presidente da República - enfatizou - está sendo vaiada nas ruas!"
E mais adiante: "Afinal, neste instante, fazes o quê, além de paparicar teus netos, Catarina e Davi, que soube, estão de férias em Salvador?"
É verdade: protestos e mais protestos - alguns desrespeitosos e suspeitos - explodem, do Oiapoque ao Chui. É o povo brasileiro pedindo um Brasil melhor.
Mas queria dizer uma coisa: seja qual for o tipo desses protestos e os motivos que os estão provocando ou justificando, por causa deles o cidadão está sendo sensivelmente prejudicado no seu inegociável direito de ir e vir.
De repente, para se andar pelas ruas e avenidas das cidades brasileiras (e também nas suas principais rodovias) se terá que carregar no bolso uma ordem judicial garantidora do direito de transitar livremente.
E o que é pior, sem a certeza de que os "protestantes" de araque desobstruam a via pública, respeitando a decisão da Justiça assegurando ao cidadão o pleno direito de locomoção.
Muito bem. No primeiro momento, achei que o amigo Joaquim estava sofrendo de uma repentina e descomunal amnésia ao me perguntar por que não houvera ainda me manifestado sobre os acontecimentos políticos que estão mexendo com a vida dos brasileiros.
Estimulando-lhe a memória, lembrei o que lhe dissera, e não faz muito tempo, ou seja, que nunca escreveria sobre política e muito menos sobre políticos. E justifiquei, falando-lhe ao pé do ouvido, ante a impossibilidade de fazê-lo a plenos pulmões, como desejava.
Mas eu tinha que lhe dar uma resposta.
Depois de estranhar o meu silêncio, ele perguntara: "Fazes, no momento, o quê?" Minha resposta, deixando-o boquiaberto, foi esta: paparicar os netos, e, nas horas vagas, lendo versos pornográficos.
O Joaquim não quis acreditar, e indagou: "Como ler versos pornográficos, num Brasil atravessando séria crise política e moral?" E até me chamou de "alienado", ressuscitando uma palavra que, nos meus tempos de Universidade, a esquerda radical e desvairada taxava os que não concordavam com Marx ou Luís Carlos Preste.
Notei, porém, seu interesse em conhecer os versos pornográficos que lhe dissera estar lendo; e claro, o seu autor. Fiz um pouco de suspense. Em seguida, recitei pedaços de poemas que, em meio à crise brasileira, lendo-os, fazem-me um brasileiro descontraído.
- "A bunda, que engraçada./ Está sempre sorrindo, nunca é trágica."
- "A bunda são duas luas gêmeas/ em rotundo meneio. Anda por si/ na cadência mimosa, no milagre/ de ser duas em uma, plenamente." (A bunda, que engraçada)
- "O chão é a cama para o amor urgente,/ amor que não espera ir pra cama./ Sobre tapete ou duro piso, a gente/ compõe de corpo a corpo a úmida trama. - E para repousar do amor, vamos à cama." (O chão e a cama)
- "No corpo feminino, esse retiro/ - a doce bunda - é ainda o que prefiro./ A ela, meus mais ítimo suspiro,/ pois tanto mais a apalpo quanto a miro." (No corpo feminino, esse retiro)
Na sua santa ingenuidade, o amigo Joaquim Sabetudo quis saber o nome do poeta desses versos pornográficos, e eu lhe disse: Carlos Drummond de Andrade. E ainda lhe dei o nome do livro: O Amor Natural.
Mas ele voltou às passeatas, insistindo em conhecer minha opinião sobre a importância dos protestos populares, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso um dia chamou de "a voz rouca das ruas", pedindo o estadista para ela, a atenção dos governantes.
Sem me alongar, disse-lhe que, na praça pública, pediria, por exemplo, a extinção da maioria dos Ministérios da República.
E, encampando a sugestão do poeta Mario Quintana, defenderia a imediata criação do Ministério da Poesia, "para onde - escreveu ele - seriam remetidos todos os poemas que se escrevessem no país."
E o Joaquim: "Vocé é mesmo um irretocável sonhador!"
Antes de desligar o telefone prometi ao amigo Sabetudo continuar lendo e me deliciando com a poesia erudita e lúbrica - creiam! - do imortal Carlos Drummond de Andrade.
"Oh! Sejamos pornográficos
(docemente pornográficos)"
Carlos Drummond de Andrade
Estranhando meu silêncio diante do que está acontecendo no Brasil, o meu amigo Joaquim Sabetudo, irrequieto e inconformado, me telefonou.
O dia mal havia nascido, e ele, pelo celular: "Cadê suas crônicas, parceiro? Ainda não entendi o porquê de sua ausência, exatamente no momento em que o Brasil estrebucha como nunca estrebuchou em toda a sua história política mais recente.
Até a Presidente da República - enfatizou - está sendo vaiada nas ruas!"
E mais adiante: "Afinal, neste instante, fazes o quê, além de paparicar teus netos, Catarina e Davi, que soube, estão de férias em Salvador?"
É verdade: protestos e mais protestos - alguns desrespeitosos e suspeitos - explodem, do Oiapoque ao Chui. É o povo brasileiro pedindo um Brasil melhor.
Mas queria dizer uma coisa: seja qual for o tipo desses protestos e os motivos que os estão provocando ou justificando, por causa deles o cidadão está sendo sensivelmente prejudicado no seu inegociável direito de ir e vir.
De repente, para se andar pelas ruas e avenidas das cidades brasileiras (e também nas suas principais rodovias) se terá que carregar no bolso uma ordem judicial garantidora do direito de transitar livremente.
E o que é pior, sem a certeza de que os "protestantes" de araque desobstruam a via pública, respeitando a decisão da Justiça assegurando ao cidadão o pleno direito de locomoção.
Muito bem. No primeiro momento, achei que o amigo Joaquim estava sofrendo de uma repentina e descomunal amnésia ao me perguntar por que não houvera ainda me manifestado sobre os acontecimentos políticos que estão mexendo com a vida dos brasileiros.
Estimulando-lhe a memória, lembrei o que lhe dissera, e não faz muito tempo, ou seja, que nunca escreveria sobre política e muito menos sobre políticos. E justifiquei, falando-lhe ao pé do ouvido, ante a impossibilidade de fazê-lo a plenos pulmões, como desejava.
Mas eu tinha que lhe dar uma resposta.
Depois de estranhar o meu silêncio, ele perguntara: "Fazes, no momento, o quê?" Minha resposta, deixando-o boquiaberto, foi esta: paparicar os netos, e, nas horas vagas, lendo versos pornográficos.
O Joaquim não quis acreditar, e indagou: "Como ler versos pornográficos, num Brasil atravessando séria crise política e moral?" E até me chamou de "alienado", ressuscitando uma palavra que, nos meus tempos de Universidade, a esquerda radical e desvairada taxava os que não concordavam com Marx ou Luís Carlos Preste.
Notei, porém, seu interesse em conhecer os versos pornográficos que lhe dissera estar lendo; e claro, o seu autor. Fiz um pouco de suspense. Em seguida, recitei pedaços de poemas que, em meio à crise brasileira, lendo-os, fazem-me um brasileiro descontraído.
- "A bunda, que engraçada./ Está sempre sorrindo, nunca é trágica."
- "A bunda são duas luas gêmeas/ em rotundo meneio. Anda por si/ na cadência mimosa, no milagre/ de ser duas em uma, plenamente." (A bunda, que engraçada)
- "O chão é a cama para o amor urgente,/ amor que não espera ir pra cama./ Sobre tapete ou duro piso, a gente/ compõe de corpo a corpo a úmida trama. - E para repousar do amor, vamos à cama." (O chão e a cama)
- "No corpo feminino, esse retiro/ - a doce bunda - é ainda o que prefiro./ A ela, meus mais ítimo suspiro,/ pois tanto mais a apalpo quanto a miro." (No corpo feminino, esse retiro)
Na sua santa ingenuidade, o amigo Joaquim Sabetudo quis saber o nome do poeta desses versos pornográficos, e eu lhe disse: Carlos Drummond de Andrade. E ainda lhe dei o nome do livro: O Amor Natural.
Mas ele voltou às passeatas, insistindo em conhecer minha opinião sobre a importância dos protestos populares, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso um dia chamou de "a voz rouca das ruas", pedindo o estadista para ela, a atenção dos governantes.
Sem me alongar, disse-lhe que, na praça pública, pediria, por exemplo, a extinção da maioria dos Ministérios da República.
E, encampando a sugestão do poeta Mario Quintana, defenderia a imediata criação do Ministério da Poesia, "para onde - escreveu ele - seriam remetidos todos os poemas que se escrevessem no país."
E o Joaquim: "Vocé é mesmo um irretocável sonhador!"
Antes de desligar o telefone prometi ao amigo Sabetudo continuar lendo e me deliciando com a poesia erudita e lúbrica - creiam! - do imortal Carlos Drummond de Andrade.