DECISÃO DIFÍCIL
Faz algum tempo fui convidada para assistir um seminário, que seria ministrado por famoso Neurocirurgião. O tema: "Ajuda para morrer", não me deixou dúvidas, e fui.
Durante três horas, ouvi o médico discorrer com conhecimento de causa, sobre o assunto. E de lá sai, mais confiante em minhas convicções, de que a melhor morte que alguém pode ter, é ao lado dos entes queridos, sem prolongar de maneira desnecessária seus sofrimentos.
Vou contar a minha experiência, em prolongar ou não a vida de um ente querido. Sem dúvida uma decisão difícil.
Minha vó Carmela, morou em nossa casa, por muitos anos, e aos 96 anos, estava há algum tempo bem combalida. Era difícil até convencê-la a tomar seu banho diário.
Há quatro anos, ela estava usando fraldas, inúmeras foram as vezes, que me comovi ao vê-la, tão dependente de mim, para suas necessidades mais íntimas. Ela que sempre fora uma mulher super tímida, envergonhada. Por isso nunca usei os serviços de uma enfermeira, pois sabia que ela, iria se constranger demais. Tentei tornar o mais natural possível, aquela fase delicada de sua existência.
Nos últimos meses de vida, eu vi, minha vó definhar, ela que sempre tivera bom apetite, recusava-se a comer. Eu precisava distraí-la, enquanto lhe levava a comida à boca, conversava muito, relembrando coisas antigas, para ver se assim, ela comia sem perceber.
Mas, minha vó foi enfraquecendo, cada dia um pouco mais, para tirá-la da cama e levá-la para se sentar na poltrona ao lado da janela do quarto, para tomar sol, exigia um esforço imenso dela.
Enfim, uma manhã notei ao banhá-la, que era evidente o declínio físico, que ela apresentava.
Me lembro, que nesse dia, as lágrimas correrem livres pelos meus olhos, e se confundiram com a água do chuveiro. Amava e amo muito, minha querida e amorosa vó Carmela.
Desse dia em diante, foi rápido o avanço do declínio orgânico, e dali algumas semanas, ela nao conseguia, nem com todo empenho de minha parte, sair do leito.
O médico, que a atendia, foi chamado, e receitou soro injetável, e somente alimentação líquida.
Dois dias depois, ele retornava, pois ela piorava.
Ele então me disse: " Há dois caminhos, ou deixamos ela aqui, no conforto do seu quarto, junto à vocês que muito a estimam, ou a levamos para o hospital, e prolongamos o sofrimento, pois lá ela pode viver algumas semanas mais, mas sem dúvida o desfecho final irá acontecer, aqui ou lá. O estado dela não tem volta."
Foi um momento de muita tristeza, onde as lágrimas não puderam ser evitadas. Porém, não tive nenhuma duvida, não vacilei, e optei por continuar a cuidar dela em minha casa, junto de todos nós.
Meu marido, meu grande companheiro, me apoio totalmente.
Diante da minha decisão, o médico me avisou, como seria difícil, assistir o declíniu final, da pessoa que eu tanto amava.
Respondi à ele, que não me acovardaria, e Deus me daria forças, para dela cuidar.
E assim foi, por 19 dias, ela resistiu.
A princípio gemia, principalmente à noite. Revezávamos eu e meu marido, passávamos a noite no quarto dela, tentando acalmá-la daquela agonia que mostrava estar vivendo.
Uma semana depois, ela se calou. Não escutei mais o som de sua voz, a me chamar, a me dizer que eu era bonita, ou Lena voce é boa pra mim, muito boa.
Uma tarde, eu estava sozinha com ela no quarto, devagar introduzia a seringa cheia de suco de frutas, em sua boca. Me lembro que nesse momento ela me olhou, e eu tive a intuição de perguntar a ela: vó, minha mãe e o vô estão aqui, não estão?
Ela com a cabeça rapidamente fez que sim.
Então perguntei: Eles estão pedindo a senhora pra ir com eles?
Novamente ela respondeu com a cabeça que sim.
Pergutei: E a senhora não quer ir?
Nessa hora ela balançou a cabeça dizendo que não.
Me comovi, e pedi a Deus que a ajudasse a desagasalhar-se dos laços físicos. E que me auxiliasse também, a não retê-la, pois sabia que sem querer, o meu amor por ela e o dela por mim, apertavam os laços que ainda a retinham ao corpo.
Desse dia em diante, minha vó, ainda estava ali, mas silenciosa, se preparando eu sabia, para a longa viagem. Senti que ela e eu precisávamos de mais algum tempo. E Deus, em seu amor, estava nos dando.
Com uma seringa, eu a alimentava, com caldos, e sucos de frutas.
Na cama eu a banhava, como podia, a trocava, e tentava deixá-la o mais confortavel possível.
Em várias horas do dia, orava em voz alta, com toda fé que havia em meu coração, pois sábia que a prece a confortava, minha vó sempre foi muito religiosa. Sempre teve muita fé em Deus.
Nesses momentos, eu sentia que ela, se acalmava, e dormia.
Ela foi dia a dia, se aninhando mais, em seu leito. Foi tomando a forma que os fetos ficam dentro do útero materno. Ficava toda encolhidinha. Queria ficar quieta.
Cada dia, ela estava mais distante, entrava mais em seu mundo, deixava claro que caminhava para o grande retorno.
Algumas vezes ainda me olhou, parecendo me ver, em outras, tinha o olhar distante, vago, sem brilho. Era como se um véu fino se formasse em seus olhos, tampando a visão de fora, e aguçando a espiritual.
No décimo nono dia, logo cedinho, a alimentei, com a seringa, a troquei, com cuidado, e ajeitei em sua cama.
Me lembro que olhei-a, e chorei muito, um pranto silencioso, enquanto a penteava. Nem de longe aquele corpo lembrava a italiana forte, disposta, de outros tempos.
Aqueles braços haviam me abraçado tanto, me dado tanto conforto, e agora estavam ali, imóveis, magrinhos.
Foi muito doloroso assistir ao declínio físico de minha querida vó.
Mas muito confortador, poder ter tido coragem, e apoio de minha família para ter cuidado com carinho até o final, de alguém a quem dedico tanto amor.
Era pouco mais de treze horas, quando ela começou a emitir um som, que vinha das entranhas do seu corpo.
Eu sabia, que era o final para minha vó, da digna viagem que ela viveu nesse planeta. Nunca havia assistido ninguém morrer, mas intuitivamente sentia que a hora havia chegado.
Reunindo as forças que eu nem sabia que tinha, me sentei na cama, coloquei a cabeça dela sobre o meu colo, com cuidado e carinho sem fim, e fiquei falando com ela dos momentos bons de nossa vida juntas.
Tenho muita sensibilidade, e senti, que recebia ajuda naqueles momentos, senti que minha mãe e meu vô, estavam ali, ajudando a mim e a minha vó, naquela hora tão delicada.
Falei mais uma vez, da minha imensa gratidão, pelo amor generoso, que ela me deu, junto com meu vô.
Repeti, pela milésima vez, o amor imenso que sentia por ela.
Disse à minha vó, que ela, podia ter certeza que minha mãe e meu avô a estavam esperando. Pois creio nisso.
E de repente ela se foi.
Eu fiquei ali com ela, ainda um bom tempo sozinha.
Fiz uma oração e pedi a Deus, que cuidasse dela com carinho, pois ela merecia muito.
Somente mais tarde, liguei para o médico que cuidava dela, ele veio e confirmou o óbito.
Faz algum tempo que ela partiu, e ainda me emociono muito, ao lembrar desses momentos.
Por isso, é bom escrever, sei que promovo uma catarse emocional.
Hoje, me lembrei do seminário que assisti, com o tema, "Ajuda para morrer", e pensei que eu faria tudo de novo, se preciso fosse.
Não mudaria nada, não a teria colocado em um hospital, onde com toda certeza, haveria mais recurso, e sua vida poderia ter durado, quem sabe, mais uma ou duas semanas.
Mas, o carinho, o aconchego, que pode ter em seu quarto, em sua cama, e com nossa companhia, isso não teria tido.
E faz toda diferença, acredito eu.
Mesmo com todo avanço da medicina, é preciso haver bom senso, para indagarmos, até quando vale a pena, prolongar os sofrimentos de quem tanto amamos. E qual o limite para parar.
(Imagem: Lenapena- Central Park)
Faz algum tempo fui convidada para assistir um seminário, que seria ministrado por famoso Neurocirurgião. O tema: "Ajuda para morrer", não me deixou dúvidas, e fui.
Durante três horas, ouvi o médico discorrer com conhecimento de causa, sobre o assunto. E de lá sai, mais confiante em minhas convicções, de que a melhor morte que alguém pode ter, é ao lado dos entes queridos, sem prolongar de maneira desnecessária seus sofrimentos.
Vou contar a minha experiência, em prolongar ou não a vida de um ente querido. Sem dúvida uma decisão difícil.
Minha vó Carmela, morou em nossa casa, por muitos anos, e aos 96 anos, estava há algum tempo bem combalida. Era difícil até convencê-la a tomar seu banho diário.
Há quatro anos, ela estava usando fraldas, inúmeras foram as vezes, que me comovi ao vê-la, tão dependente de mim, para suas necessidades mais íntimas. Ela que sempre fora uma mulher super tímida, envergonhada. Por isso nunca usei os serviços de uma enfermeira, pois sabia que ela, iria se constranger demais. Tentei tornar o mais natural possível, aquela fase delicada de sua existência.
Nos últimos meses de vida, eu vi, minha vó definhar, ela que sempre tivera bom apetite, recusava-se a comer. Eu precisava distraí-la, enquanto lhe levava a comida à boca, conversava muito, relembrando coisas antigas, para ver se assim, ela comia sem perceber.
Mas, minha vó foi enfraquecendo, cada dia um pouco mais, para tirá-la da cama e levá-la para se sentar na poltrona ao lado da janela do quarto, para tomar sol, exigia um esforço imenso dela.
Enfim, uma manhã notei ao banhá-la, que era evidente o declínio físico, que ela apresentava.
Me lembro, que nesse dia, as lágrimas correrem livres pelos meus olhos, e se confundiram com a água do chuveiro. Amava e amo muito, minha querida e amorosa vó Carmela.
Desse dia em diante, foi rápido o avanço do declínio orgânico, e dali algumas semanas, ela nao conseguia, nem com todo empenho de minha parte, sair do leito.
O médico, que a atendia, foi chamado, e receitou soro injetável, e somente alimentação líquida.
Dois dias depois, ele retornava, pois ela piorava.
Ele então me disse: " Há dois caminhos, ou deixamos ela aqui, no conforto do seu quarto, junto à vocês que muito a estimam, ou a levamos para o hospital, e prolongamos o sofrimento, pois lá ela pode viver algumas semanas mais, mas sem dúvida o desfecho final irá acontecer, aqui ou lá. O estado dela não tem volta."
Foi um momento de muita tristeza, onde as lágrimas não puderam ser evitadas. Porém, não tive nenhuma duvida, não vacilei, e optei por continuar a cuidar dela em minha casa, junto de todos nós.
Meu marido, meu grande companheiro, me apoio totalmente.
Diante da minha decisão, o médico me avisou, como seria difícil, assistir o declíniu final, da pessoa que eu tanto amava.
Respondi à ele, que não me acovardaria, e Deus me daria forças, para dela cuidar.
E assim foi, por 19 dias, ela resistiu.
A princípio gemia, principalmente à noite. Revezávamos eu e meu marido, passávamos a noite no quarto dela, tentando acalmá-la daquela agonia que mostrava estar vivendo.
Uma semana depois, ela se calou. Não escutei mais o som de sua voz, a me chamar, a me dizer que eu era bonita, ou Lena voce é boa pra mim, muito boa.
Uma tarde, eu estava sozinha com ela no quarto, devagar introduzia a seringa cheia de suco de frutas, em sua boca. Me lembro que nesse momento ela me olhou, e eu tive a intuição de perguntar a ela: vó, minha mãe e o vô estão aqui, não estão?
Ela com a cabeça rapidamente fez que sim.
Então perguntei: Eles estão pedindo a senhora pra ir com eles?
Novamente ela respondeu com a cabeça que sim.
Pergutei: E a senhora não quer ir?
Nessa hora ela balançou a cabeça dizendo que não.
Me comovi, e pedi a Deus que a ajudasse a desagasalhar-se dos laços físicos. E que me auxiliasse também, a não retê-la, pois sabia que sem querer, o meu amor por ela e o dela por mim, apertavam os laços que ainda a retinham ao corpo.
Desse dia em diante, minha vó, ainda estava ali, mas silenciosa, se preparando eu sabia, para a longa viagem. Senti que ela e eu precisávamos de mais algum tempo. E Deus, em seu amor, estava nos dando.
Com uma seringa, eu a alimentava, com caldos, e sucos de frutas.
Na cama eu a banhava, como podia, a trocava, e tentava deixá-la o mais confortavel possível.
Em várias horas do dia, orava em voz alta, com toda fé que havia em meu coração, pois sábia que a prece a confortava, minha vó sempre foi muito religiosa. Sempre teve muita fé em Deus.
Nesses momentos, eu sentia que ela, se acalmava, e dormia.
Ela foi dia a dia, se aninhando mais, em seu leito. Foi tomando a forma que os fetos ficam dentro do útero materno. Ficava toda encolhidinha. Queria ficar quieta.
Cada dia, ela estava mais distante, entrava mais em seu mundo, deixava claro que caminhava para o grande retorno.
Algumas vezes ainda me olhou, parecendo me ver, em outras, tinha o olhar distante, vago, sem brilho. Era como se um véu fino se formasse em seus olhos, tampando a visão de fora, e aguçando a espiritual.
No décimo nono dia, logo cedinho, a alimentei, com a seringa, a troquei, com cuidado, e ajeitei em sua cama.
Me lembro que olhei-a, e chorei muito, um pranto silencioso, enquanto a penteava. Nem de longe aquele corpo lembrava a italiana forte, disposta, de outros tempos.
Aqueles braços haviam me abraçado tanto, me dado tanto conforto, e agora estavam ali, imóveis, magrinhos.
Foi muito doloroso assistir ao declínio físico de minha querida vó.
Mas muito confortador, poder ter tido coragem, e apoio de minha família para ter cuidado com carinho até o final, de alguém a quem dedico tanto amor.
Era pouco mais de treze horas, quando ela começou a emitir um som, que vinha das entranhas do seu corpo.
Eu sabia, que era o final para minha vó, da digna viagem que ela viveu nesse planeta. Nunca havia assistido ninguém morrer, mas intuitivamente sentia que a hora havia chegado.
Reunindo as forças que eu nem sabia que tinha, me sentei na cama, coloquei a cabeça dela sobre o meu colo, com cuidado e carinho sem fim, e fiquei falando com ela dos momentos bons de nossa vida juntas.
Tenho muita sensibilidade, e senti, que recebia ajuda naqueles momentos, senti que minha mãe e meu vô, estavam ali, ajudando a mim e a minha vó, naquela hora tão delicada.
Falei mais uma vez, da minha imensa gratidão, pelo amor generoso, que ela me deu, junto com meu vô.
Repeti, pela milésima vez, o amor imenso que sentia por ela.
Disse à minha vó, que ela, podia ter certeza que minha mãe e meu avô a estavam esperando. Pois creio nisso.
E de repente ela se foi.
Eu fiquei ali com ela, ainda um bom tempo sozinha.
Fiz uma oração e pedi a Deus, que cuidasse dela com carinho, pois ela merecia muito.
Somente mais tarde, liguei para o médico que cuidava dela, ele veio e confirmou o óbito.
Faz algum tempo que ela partiu, e ainda me emociono muito, ao lembrar desses momentos.
Por isso, é bom escrever, sei que promovo uma catarse emocional.
Hoje, me lembrei do seminário que assisti, com o tema, "Ajuda para morrer", e pensei que eu faria tudo de novo, se preciso fosse.
Não mudaria nada, não a teria colocado em um hospital, onde com toda certeza, haveria mais recurso, e sua vida poderia ter durado, quem sabe, mais uma ou duas semanas.
Mas, o carinho, o aconchego, que pode ter em seu quarto, em sua cama, e com nossa companhia, isso não teria tido.
E faz toda diferença, acredito eu.
Mesmo com todo avanço da medicina, é preciso haver bom senso, para indagarmos, até quando vale a pena, prolongar os sofrimentos de quem tanto amamos. E qual o limite para parar.
(Imagem: Lenapena- Central Park)