Os três Silenos
Nenhum homem é uma ilha, como dizem aqueles tão ávidos para refutar os encantos da Solidão sem ao menos deles terem (ou quiserem ter) participado. Refuto-os! Desde meus mais verdes anos vivi isolado entre as muralhas de meu hermit kingdom particular – não sendo como os outros e amando o que amei a sós, tal como Poe escreveu tão magistralmente em um de seus mais belos poemas e que somente posso mutilar ao citá-lo.
Entretanto, para não dizer que sou tão misantrópico a ponto de não receber quaisquer visitas em minha corte, possuo um círculo limitadíssimo de amigos ao qual sou muito grato por vários auxílios emocionais (e até materiais) que prestaram-me ao decorrer de tantos anos que os conheço, e que preenchem os muros de meu inexpugnável castelo com alegria e divertimento. Primus inter pares, porém, há um de meus antigos companheiros de infância que, inseparável de mim há quase vinte anos, adquiriu um status quase que mitológico devido a tantos feitos que juntos realizamos.
Não sei se ele gostaria de ter seu nome revelado na presente crônica – não é ele uma pessoa muito afeita a aparecer em público. O chamemos de Viktor, portanto. Viktor e eu somos, modéstia à parte, as mais grandiosas mentes pensantes da cidade onde vivemos – onde não foi necessário fazer muito esforço para sê-lo, convenhamos, já que ninguém aqui pensa. (Este posto, porém, é nosso por ora, e não estamos abertos para concorrência.) Desde nosso primeiro ano de amizade percebêramos que aquilo seria para sempre, e continuamos assim a seguir pela estrada da Literatura com ambições diferentes mas céleres passos iguais – eu, romântico perdido no presente século, e ele sonhando com os vindouros. Dentre tantas aventuras e desventuras que vivenciamos, escolho para narrar uma das mais divertidas, e das quais ainda hoje relembro-me com muito carinho mesmo que nos pinte sob uma luz deveras humilhante e desfavorável (dando-me outro motivo para omitir o verdadeiro nome de meu comparsa).
Era um dia de julho de 2014, e resolvêramos participar de alguns divertimentos mundanos. Com o cair da noite, partimos a um bar de aparência esquálida para nos embebedarmos – em verdade, dizer “aparência esquálida” é um generoso eufemismo; o lugar era horrível, tanto por fora quanto por dentro, mas ao descobrir recentemente que não mais existe senti-me um tanto quanto pesaroso. Viktor tinha dinheiro; prometeu pagar-nos as bebidas. Dizer “bebidas” também não faria jus àquela beberagem de duvidosa qualidade que a taverneira explicou-nos ser vodca e que era vendida por 1 real(!) – mas como não sou um grande sommelier não posso estender-me em demasiado neste ponto. O que posso dizer, entretanto, é que nos intoxicamos fortemente com aquele líquido.
A partir daí, tudo aquilo que se sucedeu provém de memórias fragmentadas. Meu amigo conversava em russo com um senhor que cantava-lhe uma canção de Roberto Carlos, eu andava em círculos ao redor da mesa de sinuca até esbarrar na jukebox e miraculosamente fazê-la tocar, e nossa farra assim continuou por bons minutos até um terceiro conviva adentrar o bar, majoritariamente deserto.
Era um moço de jaqueta preta. Cumprimentou-me como se já me conhecesse de longa data; estava mais bêbado do que meu amigo e eu juntos. Em seguida disse-me para não contar a seu chefe, em outra cidade, que estava ali, e elogiou as partes íntimas de uma garota de quem aparentemente gostava. Não sabia o que pensar daquele pobre-diabo; dei-lhe, porém, o máximo de atenção que conseguia, pois faz parte de minha natureza conversar com qualquer um que me procure por mais que não consiga manter diálogo. Após deixar o bar com Viktor, fui rever este moço uma última vez algumas horas depois, coberto de vômito, sendo carregado em uma maca para dentro de uma ambulância não muito longe de onde estávamos. Peculiar coincidência…!
Mas esqueçamo-nos dele por ora. Oito anos se passaram desde então, e quero crer que atualmente se encontra bem. Necessitei com mais urgência voltar minhas atenções a meu amigo, que não cessava de perturbar os transeuntes na rua e por pouco não apanhou de um – mas o final da história acabou sendo alegre, pois a encerramos sendo ajudados por uma linda moça que viria a tornar-se uma boa amiga minha até o Tempo separar-nos (como é de praxe). Se bem que dela fiquei íntimo meramente por ser tão similar à minha primeira namorada… Ou pelo menos a bebida assim o fez parecer. Oito anos depois, no entanto, ainda espero que pense em mim.
Desde então, ele e eu nunca mais bebemos tanto juntos – não por princípios de abstinência, mas sim porque julgamos que nunca mais teríamos outra aventura que a esta se igualasse – mas a esperança é a última que morre, e quem sabe um dia, “out of the blue”, ele decida levar-me a algum outro decrépito bar de cuja existência eu nem desconfiaria para, em homenagem aos “good old times”, causarmos caos nas ruas da cidade uma vez mais.
(São Carlos, 28 de março de 2022
Agradecimentos especiais a Marcos Andrada)