Transubstanciação do Comércio
Decidi escrever esta crônica depois de uma experiência de indução visual capitalista. Explico. A experiência partiu da visão. O que vi eu já havia provado anteriormente e foi satisfatoriamente aceito pelos sentidos e gravados na memória. As coisas que estão na memória, estão como que dormindo em um quarto fechado e escuro. Elas precisam ser despertadas, e serão, quando houver uma associação de imagens idênticas entre o modelo gravado e a imagem percebida pelos sentidos (isso me fez lembrar um "jogo da memória").
Lembrar: acordar o que está dormindo.
Daí, o que vi me fez lembrar de que aquilo era bom, satisfatório aos meus sentidos, ou seja, eu gosto. E gostando desejei prová-lo novamente.
Mas era preciso comprar. Pagar o valor anunciado.
Eu não queria comprar o objeto que estava à venda, só que ele escondia em si uma saudade mansa de um "não-sei-o-quê" que o tornava transparente e era isso que eu desejava: adquirir o símbolo para minhas saudades.
Qual símbolo?
Um ovo de Páscoa.
Não pelo chocolate em forma de ovo, enrolado em papel-alumínio e plástico multicolorido; mas sim, pela atmosfera que o rodeia...
Não comprei o ovo de Páscoa. Minha vontade me enganou. Seu verdadeiro valor foi desvalorizado. E o cotidiano mostra esse avesso dos valores.
Uma criança me pegou desprevinido e me fez uma pergunta enigmática: "O que tem dentro de um ovo?" Não hesitei em esconder meu sorriso crítico. Inquisidor. E julgando-me inteligente respondi com firmeza: "A clara e a gema!" Num simples olhar ela conclui seu pensamento lançando-me outra pergunta: "Então, como faz para se transformar em osso, sangue e penas lá dentro?" Calei. Caí daquele trono outrora erigido pela minha auto-afirmação, minha máscara foi desvelada pela soberana sabedoria infantil. Sensibilidade observante das coisas simples. Não sabia dar uma resposta tão clara que convencesse aquela sábia criança.
Eis o verdadeiro valor do ovo na Páscoa.
Ele esconde no seu mistério a gravidez de uma vida completamente diferente do que se imagina. Rompendo a casca surge vida nova. Os seres têm essa sina. Metamorfose. A lagarta que, quando atinge uma certa maturidade, finge morrer. Dorme o sono num casulo que rompe e surge, como num milagre, a borboleta formosa. Também os mamíferos que, no ventre materno, se preparam misteriosamente para encarar uma nova etapa da vida e que muitos homens pensam ser definitiva.
Me deu saudades da paisagem bucólica de uma cidade do Distrito Federal em que meu pai tinha um pequeno terreno para plantio. Brazlândia. Vi várias vezes meu pai furar a terra para colocar ali uma, duas, três ou mais sementinhas secas de milho, para que, no segredo da terra surgisse uma pontinha de verde que se desenvolveria até chegar a maturidade e poder dar novos milhos.
Era um ritual.
Todos os anos meu pai preparava a terra e ela se preparava para conceber e dar à luz. Sim, o cio da terra. Esperar o tempo da fertilidade, depositar nela sêmen-tes. Esperar a gestação. Vida nova.
Como é bom sentir o cheiro do campo... e o milho cozido que eu mesmo plantara e colhia; com o meu esforço, meus sentimentos... é um pouco de mim que ofereço para que também outros se alimentassem. Parece até que o milho é uma extensão do meu corpo. Daí brotam palavras sacramentais: "Tomai e comei, isto é o meu corpo". Celebrar a vida.
Hoje recolho símbolos do meu quotidiano e os vejo com outros olhos. Contemplo a exploração descarada do comércio em reduzir os sentimentos e sinais religiosos em matéria efêmera: A Ressurreição de Cristo em dia de comer ovos de chocolates apresentados por um coelho de lacinhos. A Encarnação do Verbo de Deus em dia de dar e ganhar presentes e comer pão com frutas cristalizadas apresentados por um bonachão Papai Noel. E o pior é que ouço muitos cristãos dizerem que não há celebração da Páscoa sem ovos de chocolates e nem Natal sem Papai Noel e "panettone".
Escolhi para título uma delicada sugestão que esconde uma revolução dos símbolos das minhas felicidades. É uma transformação, não do símbolo, mas do que eu vejo neles. Uma mudança da substância, da essência do ovo da Páscoa. O comer e a preparação para a fertilidade. Uma transubstanciação do comer-cio.
Cear com os amigos, dividir o pão. Dividir a vida. Celebrar a vida. Essa é a Páscoa. Celebrar a vida que estava dentro da casca, do ventre, da terra.
Do sepulcro.
Invoco um cântico antiqüíssimo da tradição cristã, "Victimæ Pascali laudes", que canta:
"Mors et vita duello conflixere mirando:
Dux vitæ mortuus, regnat vivus".
A morte e a vida que, numa batalha, se enfrentam. E que no final o Rei da vida é morto. Deus está Morto, dizia Nietzsche. Mas reina vivo, diz o Mistério.