"Recordações de uma menina"-Capítulo10

Recordações de uma menina

Décadas 30/40

Bairros Ipanema e Leblon

Capítulo 10

Epílogo

Com este capítulo 10, encerro a série "Recordações de uma menina". Não poderia prosseguir, porque desde o falecimento de meu pai (1943), a menina sonhadora e criança, amadureceu bruscamente e tornou-se a adolescente muito mais adulta que menina. Aqui, agora, vou registrar apenas detalhes que vivenciei, sem ordem cronológica, apenas para citar detalhes,sem compromissos.

Miscelânea, drops de acontecimentos:

Carnaval no Rio Antigo era a maior folia nas ruas. Todo mundo fantasiado, blocos coloridos dançando animados, carros abertos jogando serpentinas e confetis entre eles, numa alegtia intensíssima, blocos de sujo rolando, pulando pela avenida, cantando, numa festa alegre, contagiante e respeitosa;

Vi o Zepelin enorme, voando baixinho. Senti muito medo pelo tamanho dele com seus reflexos prateados. Todo mundo correu pra rua pra observar esta espantosa aparição;

Conheci, ainda muito pequena, o ônibus de 2 andares. Minha mãe queria que eu entrasse, mas me deu muito medo: a gente entrava por trás e subia uma escadinha estreitinha, ônibus muito alto, para mim era demais, mas muito feio inclusive, por que não vingou?;

A repulsa popular pelo covarde afundamento, por submarinos alemães, de navios brasileiros nas costas de Sergipe, levou o Presidente Getúlio Vargas a declarar guerra às potências do Eixo, em agosto de 1942. Foram momentos de grande agitação aqui no Rio de Janeiro, capital federal, na época. Todo mundo na rua em comícios, passeatas exigia que o Presidente Vargas cortasse relações com os paises do Eixo e declarasse guerra imediatamente;

Pouco mais de um ano depois, surgia então a FEB-Força Expedicionária Brasileira - que, em julho de 1944, desembarcou em Nápoles com os primeiros Pracinhas que lutaram na Itália. Para os 25 mil soldados brasileiros, a guerra durou 239 dias de ação e de heroismo. Não vou entrar em detalhes, porque isso tudo está sendo comentado, na ótica de uma menina, apenas;

Os bondes circulavam com areia depositada debaixo dos bancos, para poder apagar incêndios se houvesse bombardeio iminente, era sempre alarme geral;

O povo, amedrontado, se escondia em suas casas. Black out geral na cidade. Aqui em casa, um medo enorme que meu irmão mais velho fosse convocado. Minha mãe em lágrimas, meu pai arrasado, mas tínhamos que continuar a viver dentro dessas realidades;

Começou a falta de gêneros alimentícios, nada se conseguia com facilidade, tudo economizado. Pra nós, brasileiros, povo gentil, amigo, maravilhoso, estava sendo a maior provação, pois não somos e não fomos gerados e criados para guerras e agressões;

Deixemos de lado as coisas tristes um pouco. Falarei de moda, de roupas, perfumes que as mulheres tinham hábito de usar. Elas vestiam-se com apuro. Ao sair só iam enchapeladas. com luvas e vestido de seda, como se usava antigamante. Eu me lembro muito bem minha mãe bonita, nova, risonha, com chapéu lindo, perfumada e vestido pela altura da canela. Era tão linda!! E, eu tinha que usar boina, franjinha e com luvas que me faziam ficar com os dedos bem esticados e abertos, obrigada a saber usá-las direito. Era um horror, tinha raiva, porque me incomodava, Era a lenga-lenga diária: "menina, fecha essas mãos, parece uma tapiucana, que nunca usou luvas!" Já nós no Leblon, muito me marcou o "Grande Prêmio Brasil", no Jockey Clube (bairro da Gávea), aquela corrida de cavalos, conhecidíssima até hoje. onde a alta sociedade, em perene desfilar da mais escolhida moda parisiense competia na beleza e na graça feminina. Esses desfiles eram regados à champanhe e guaraná para as crianças. Os homens com seus incríveis chapéus, coletes, luvas, polainas e bengala, que era o símbolo da moda masculina da época. Era um contínuo festival de bom gosto, com tanto luxo, tanta beleza... Adorava quando me levavam, sempre escolhia o cavalo errado, aquele pangaré que chegava em último lugar, mas que fazer? Até muito tempo adiante os homens usavam chapéu, dava um ar de respeito, de beleza. Até hoje adoro quem usa chapéu, fica chique demais, pelo menos pra mim, que venho de longa data.

Dia importante na cidade. Era um burburinho louco, uns cochichares animados, tagarelares cheios de extrema emoção: Entrou em cartaz, nos melhores cinemas do Rio o filme "E O VENTO LEVOU". Grupos se agutinavam nas esquinas, conversando, combinando a grande festa do momento, filme que levava mais de 3 horas de exibição e, prontamente, eram providenciados merendas gostosíssimas para poderem enfrentar tanto tempo... Ironia do passado, coisas que "o vento levou"... Mas foi um acontecimento importante, e eu assistindo tudo aquilo, deslumbrada neste passado tão cheio de surpresas e encantamentos..,

Pelas ruas eram constantes os vendedores ambulantes, recitando suas mercadorias para vender de porta em porta. Garrafeiros, vassoureiros, carregados de muitas espécies coloridas de artigos de limpeza, vendedores de modinhas, cantando as últimas letras das canções recentes, folhetins com capítulos de livros, vendidos e gritados nas ruas suas estórias(histórias) como chamavam na época. Baleiros, sorveteiros cantavam seus produtos, dançando para animar seus fregueses. Foi um passado mágico, sedutor

Tinha o bonde de segunda classe, o "taioba". Nele viajavam as lavadeiras, com suas enormes trouxas de roupa. os jardineiros, com suas pás, enxadas, levavam tudo que precisavam carregar, pessoas levando caixas, cestas enormes, como se fosse mudança. Era um bonde fechado, com entradas pela frente e por trás, o que o distinguia dos bondes de passageiros que eram abertos e fáceis de embarcar, com seus balaústres e estribos. O taioba era muito mais barato, pois era para o pessoal de baixa renda. Lá em casa, meus pais proibiam a gente andar de taioba, mas um dia, numa brincadeira com muitos amiguinhos, embarcamos no taioba na maior bagunça, gritando, pulando. Eis quem nos vê da rua: "Meu pai". Quando chegamos em casa foi um sururú doido, castigos, repreensões. Adorava andar de bonde, era uma viagem agradável, fresquinha pelos bairros de praias lindas, maravilhosas, como são até hoje.

Falaria aqui de muitas coisas, que vocês nem imaginam ter existido. Seriam obsoletas hoje, com esse progresso maravilhoso, mas tinham na época, seu valor, seu encantamento. Tive oportunidades de ver muitas pessoas célebres, cantores, atores, políticos e um cem número, que hoje fazem parte do elenco da saudade.

Completei, embora tênuemente, meu desejo de um falar-menina da minha infância que foi meu paraíso encantado, minhas visôes-criança, de uma formação familiar que tive a ventura de participar. Deixo aqui revelados, meus momentos simples, minha vida querida com meus agradecimentos a todos que a povoaram, que foram o palco e o alicerce de meu passado, de meus enredos de contos infantís, de minha vida pequena...

Muito obrigada a todos que têm acompanhado esse desenrolar tão simples de uma menina-idosa, que adora recordá-lo e poder revivê-lo com tantas saudades.

Maria Myriam Freire Peres

Rio de janeiro, 13 de janeiro de 2005

(A todos, que tiveram a bondade de acompanhar essa menina de tranças, criança, de veios puríssimos da maior esperança, sinceramente muito emocionada,agradeço o carinho.)

Myriam Peres
Enviado por Myriam Peres em 19/08/2005
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