Nordestinos
            pai-d´éguas




           Aí resolvi ler alguma coisa capaz de mandar a insônia pros infernos. 
           Pensei em Alexandre e outros heróis, histórias jocosas do alagoano Graciliano Ramos; ou reler poemas do pernambucano Manuel Bandeira.
           Podia, também, optar pelos versos matutos do cearense Patativa do Assaré - "Sou irmão do sofrimento,/ Pois sou fio do Nordeste, / Nesta vida tudo infrento, / Topo fome, guerra e peste." 
           Terminei apanhando, na minha estante, Dias idos e vividos, do paraibano José Lins do Rego. Abri o livro do autor de Bangüê,  e caí na página em que o Zé Lins escreve sobre a efetiva e substanciosa participação do Nordeste na literatura brasileira.

           Como gosto de viajar, podia ter escolhido outra página; Cidades, por exemplo. 
            Em poucas horas, e sem sair de minha redinha, comprada em Fortaleza, faria, na companhia de Zé Lins, um passeio pelas ruas de Atenas, de Capri, de Sintra, de Lisboa, e até navegar nas águas cheias de histórias e romantismo do belo Sena.
            Mas preferi ficar no Nordeste. No meu chão. Com os nordestinos. Seria o melhor acalanto, naquela madrugada de quebra-luz aceso. E acertei na mosca. Li as últimas linhas do capítulo escolhido praticamente dormindo.
            Ainda deu para gravar o que o mestre de Menino de engenho escrevera sobre Tobias Barreto, Sílvio Romero, Adolfo Caminha, Franklin Távora, Aluízio Azevedo, Domingos Olímpio, Augusto dos Anjos e José Américo de Almeida, autor do "primeiro grande romance do Nordeste".
            Como José de Alencar e Rachel de Queiroz (foto) , Coelho Neto e Artur de Azevedo, Josué Montello,  Humberto de Campos e Gonçalves Dias, todos são escritores nordestinos.
              Quando acordei, o sol havia rompido a barra; e os passarinhos do meu jardim cantavam na minha janela. 
              Da cozinha, vinha um cheiro forte de café feito na hora; de ovos estrelados; de macaxeira frita; e de cuscuz mergulhado numa legítima manteiga de garrafa.
              No meu gabinete, os jornais do dia me esperavam. Ainda em jejum, abri a primeira gazeta.
              Surpreendeu-me sua manchete, que dizia o seguinte: " Ironizar nordestinos e homossexuais será crime." 
              Perplexo, perguntei à minha mulher, que diabo de notícia era aquela. 
               Ivone, tentando me acalmar, respondeu: "Querem meter no novo Código Penal um artigo proibindo a manifestação pública de desapreço em razão de raça, opção sexual, origem, etinia e credo religioso."  
              E leu a minuta do que viria a ser, se aprovada, a nova norma penal.
             A origem. Claro que o legislador não inseriu no texto, com todas as letras, uma referência expressa aos nordestinos, como insinuara a intrigante manchete.  
            Ao adotar, entretanto, a expressão "desapreço em razão de ... origem", especulou-se que a nova lei desejava, sim, proteger os "paraíbas"! 
            Conclusão a que teriam chegado alguns exegetas famosos, segundo a imprensa sulina. 
            Aos circunstantes, fiz as seguintes observações: quanto às "bichas" - que lá no Ceará a gente chama de baitolas -, inserir um artigo no código  para protegê-las, é demagogia.  
            Apesar da opção que fizeram, são cidadãos (dãs) brasileiros (ras) claramente amparados (das) pela Constituição Federal. Perante a Lei Maior somos todos iguais... bichas ou não. Isto não é novidade.
            Se o legislador quis, em última análise, chaleirar os nordestinos, os do Nordeste louvam-lhe a intenção, mas dispensam a gentileza.   
            Foi-se o tempo em que os nordestinos que vivem no Sul eram tidos e havidos, tratados ou entendidos, como bichos do mato, burros, caipiras, tabaréus, matutos, etc., etc., etc.
           Ao longo dos anos, com sacrifício e ousadia, eles, longe do seu torrão, foram construindo sua história, sua identidade, honrando suas origens. 
           Os "paraíbas", os "baianos" e os "cearás", espalhados pelo Brasil, são nordestinos inteligentes e respeitados pai-d´éguas.  Ninguém se engane.




  
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 04/04/2007
Reeditado em 12/12/2020
Código do texto: T437920
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