LAGO OESTE (TER UMA CHÁCARA)

LAGO OESTE (TER UMA CHÁCARA)

Dizem que a voz do povo é a voz de Deus. Se é ou não, prefiro não entrar no mérito. De qualquer forma, há um dito popular que o povo costuma ter como certo:”Chácara - também conhecida com Sítio, Fazendinha ou Casa de Campo - é motivo de duas alegrias: a primeira, quando a compramos; a segunda, quando a vendemos”.
Por mais que isto soe como uma sentença, para salvação de quem quer se ver livre do “problema”, todos os dias há pessoas querendo comprar uma. Muitos sonhos relacionados, principalmente, ao descanso e ao lazer estão associados ao desejo de possuir um terreno fora da área urbana, cercado de vegetação, água corrente, galinhas, fruteiras, horta doméstica e, claro, uma simpática “casa de campo”...que pode ser como a de Zé Rodrix e Tavito, na letra da canção:

“Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais
Eu quero carneiros e cabras pastando solenes
No meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
E um filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros
e nada mais”.

Ou como a nossa...

Durante quatorze anos, possuímos uma pequena chácara com dois hectares (20.000 m²), situada a vinte e cinco quilômetros do centro da cidade, em posição geográfica privilegiada. O terreno retangular, medindo 250 metros de comprimento por 80 metros de largura, faz parte do Núcleo Rural Lago Oeste (NRLO), no Distrito Federal.

Ocupando uma área total de três mil e quinhentos hectares (ou 35 km2), com 1.350 chácaras e situado no ponto mais alto, a noroeste do Plano Piloto, o “Lago Oeste” é habitado por oito mil e quinhentas pessoas (dados de 2.005). Em toda a sua extensão, a área tem como vizinho ilustre o Parque Nacional de Brasília, onde são preservadas as espécies vegetais e animais do cerrado.

A população se aglutina em torno de uma Associação de Moradores (ASPROESTE), e dispõe de escolas, igrejas, posto de saúde, supermercados, shoppings, restaurantes, escritório da EMATER, fiscalização do IBAMA, treinamento do SENAR/DF e mais algumas empresas públicas e particulares, que oferecem seus serviços e produtos aos residentes fixos e aos que ali vão apenas nos fins de semana e feriados.

O policiamento tem sido um dos maiores problema da região. As tentativas de manter um Posto Policial em funcionamento, rondas diurnas e/ou noturnas, instalação de telefones públicos e iluminação ainda não foram suficientes para evitar roubos, assaltos, comércio de drogas, prostituição e até mortes violentas.

Mas há, ainda, uma situação invisível, que só se percebe após algum tempo de presença no local. Existe ali uma espécie de pacto de silêncio entre os caseiros que residem geralmente em uma casa menor, no fundo das chácaras. Eles possuem telefone celular e eletrodomésticos básicos, quase todos têm automóveis, motos ou bicicletas. Geralmente trabalham “fixados”, sabem ler e escrever e conhecem seus direitos trabalhistas, o que não se pode dizer da maioria com relação aos deveres.
Eles sabem sobre tudo o que acontece de uma a outra ponta da região, desde o perfil e hábitos dos proprietários, bens de valor existentes no interior das chácaras, sistemas de segurança instalados, projetos. Dizem até que existe uma “rádio Lago Oeste”, onde as informações são passadas instantaneamente. Cadastram os “amigos” que estão sintonizados com as regras dos negócios paralelos e negociatas existentes na área. Eliminam os “desafetos”, através de pressão psicológica. Se necessário, usam pressão física, de modo que o forasteiro desista de ser “olheiro” ou “dedo duro” ou concorrente. Assim, eles se coordenam, se ajudam, obtêm vantagens extras dos patrões e visitantes e acobertam os mal-feitos uns dos outros.

Há casos engraçados e desgraçados que compõem o dossiê das histórias.

Na nossa chácara aconteceram fatos impressionantes, durante aqueles quatorze anos. Trabalharam lá cinco caseiros efetivos e três substitutos, por motivo de férias do titular. Cada um era um problema novo ou uma história hilária.

No início tirávamos água da cisterna. Os testes mostravam que havia mais de quatro metros de água potável a partir do vigésimo quinto metro perfurado, mas não ouvíamos a bomba de imersão funcionando. Pedi ao funcionário do momento que a retirasse para levá-la ao conserto. Ao que ele argumentou:
- Não tem mais bomba lá. Sumiu.
- Sumiu?
- É. Acho que ela se soltou da corda e a terra a engoliu.

Uma vez, ao chegar à chácara vimos, literalmente desmanchado, o muro que a separava da do vizinho, no trecho que ficava apenas a cinco metros dos fundos da nossa casa.
- Como isto aconteceu? Perguntei.
- Acho que foi um trator que ia passando do lado de lá...

Outra vez, dei pela falta do cão de guarda.
- Onde está ele? Perguntei assustada.
- Está enterrado logo ali. Morreu de repente.

Compramos um mestiço das raças fila com cocker, a quem demos o nome de Sultão. O nome lhe caiu tão bem que a vizinhança o apelidou de “Garanhão do Lago Oeste” pois, ao primeiro sinal de cadela no “cio” nas proximidades, era capaz de escalar o muro de cerca de três metros de altura para encontrá-la. Nada o detinha, a não ser as resistentes grades do canil. Sempre voltava imundo, faminto e todo machucado. Ordenei ao caseiro que o mantivesse preso, pois vinha me custando muito caro levá-lo ao veterinário a cada “cio”, ocorrido na redondeza. Como as ordens não eram cumpridas e a situação se repetia, um dia ameacei:
- Se você deixar este cachorro fugir outra vez, a próxima conta do veterinário será descontada do seu salário.
Dias depois cheguei à chácara e encontrei Sultão triste e andando vagarosamente. Perguntei o que havia acontecido.
- Parece que ele foi castrado. Mas já está tudo bem.
E virando o cachorro de lado, confirmou:
- Olha só, nem está inflamado.

Um dia, outro funcionário ligou:
- Aconteceu um negócio aqui.
Tremi nas bases, porque só podia ser problema. E era.
- O que foi?
- Arrombaram a sua casa e levaram o aparelho de som, mas não fique triste. Se a senhora quiser, posso conseguir outro igualzinho, por um preço bem barato.

Em outra ocasião, o empregado do vizinho e o meu, que eram cunhados, brigaram feio. Quando chegamos à chácara, estava o maior bafafá: acusações, gritaria, ameaças. Tentamos defender o nosso funcionário, pois o outro parecia muito agressivo. Isto o deixou tão nervoso, que pegou meu ex-marido pelo braço e disse:
- Vamos ali que quero mostrar uma coisa para o senhor. O senhor vai saber agora quem é o seu caseiro bonzinho.
O outro gritou de lá:
- Quebrou a cara, seu bobo. Eu já arranquei.
- Mas eu conto assim mesmo! respondeu o primeiro.
E afastando o capim alto detrás do galpão, apontou para um buraco recente lá no meio:
- Veja! Sabe o que ele plantou aqui? Uma muda de maconha.
Aí é que entendemos o porquê do nosso caseiro nunca ter tempo para capinar aquele local, apesar de já termos determinado isto mais de uma vez.

Certa vez autorizei um outro a contratar o amigo, de quem eu conhecia o patrão, para ajudá-lo a limpar a chácara.
Liguei pela manhã e ele informou que o rapaz estava lá, capinando. Logo depois do almoço fui ver como estava indo o serviço.
- Cadê seu ajudante?
- A senhora nem sabe... Deu uma zebra.
- Como assim?
- Bem, ele estava aqui capinando... “Vieram” contar que seu cunhado estava estuprando a sobrinha. Aí ele me pediu a bicicleta emprestada e foi lá.
- E daí?
- Daí que ele matou o cara e fugiu na minha bicicleta. A polícia até já passou por aqui procurando por ele.

Um dia, antes de chegar à chácara, passei no armazém em frente para comprar alguns produtos. O dono comentou:
- Que festão ontem, hein? Nem convida a gente...
- Festa? Que festa?
- Na sua chácara, uai. Tinha gente que não acabava mais.

As confusões eram tantas que, em algumas oportunidades, a caminho de lá, eu retornava para casa com receio do pudesse encontrar na chegada.
Outras histórias aconteciam também na redondeza, que acabavam chegando ao nosso conhecimento nos fins de semana. Casos de crianças e adolescentes que pulavam muros de uma para outra chácara para cortar caminho e eram atacadas por cachorro bravo, rinhas de galo, prostituição de menores, aparecimento e desaparecimento, bem como empréstimos e até comercialização de objetos e ferramentas dos patrões e outras peripécias.

Em contrapartida, de um modo geral, os proprietários das chácaras sempre estimularam o pessoal que ali trabalhava a estudar, pensar no futuro dos filhos, a evitar gravidez indesejada, cuidar da saúde da família. No nosso caso, patrocinamos cursos de treinamento com uso adequado de técnicas rurais, repassamos informações sobre higiene e outros cuidados no manuseio de plantas, adubos, fertilizantes.

Havia também o lado prazeroso do contato com a natureza, que se constituíra na motivação maior para estarmos ali.
Um dos momentos que mais me agradava era o do cheiro da chuva caindo sobre a terra, após a longa estiagem do inverno. Nos períodos de bonança, apreciava o verde brotando por todos os lados e o revezamento do colorido das fruteiras de acordo com a estação. O panorama geográfico permitia ver a cidade lá embaixo, as estrelas mais próximas e as nuvens brincando com a lua, como se quisessem nos distrair dos dissabores e preocupações. Belíssimo era também o espetáculo multicolorido do pôr do sol contemplado da rede na varanda. Sentia-me abençoada pela natureza. O churrasco com os amigos e familiares nos fins de semana e feriados, a convivência com os animais domésticos e, principalmente, o despertar as dez ou onze horas da manhã quando se imaginava ser apenas sete, davam-me a sensação de férias curtas, mas plenas.

Excluídos os custos operacionais e as surpresas desagradáveis, posso afirmar que bastam duas ou três noites dessas para recarregar as energias, melhorar o humor e dar um rumo mais positivo aos acontecimentos que afetam a rotina, por alguns dias.
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 04/04/2007
Reeditado em 04/04/2007
Código do texto: T437788
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