Crônica do engano
A cama estava desarrumada do jeito que você deixou. O quarto tinha seu cheiro de cigarro barato e no travesseiro alguns fios brancos advindos das preocupações com a editora. O cinzeiro abarrotado denunciava sua insônia. A luz ainda estava quente. O livro aberto na pagina 56 com um trecho grifado que você tentou encaixar em quaisquer de seus ensaios. Sempre soube da sua falta de criatividade que era acobertada com citações ou com ‘intertextualidades’, era assim que você dizia, não era? A escrivaninha despencada com as gavetas abertas, como aquelas dos filmes em que o quarto do mocinho é revirado pelo vilão.
Era insuportável o cheiro de álcool naquele lugar e ainda mais insuportável era aquele disco arranhado que você esquecera tocando quando saiu. Parei a vitrola e senti a calma do silencio me lamber a face. Tive medo de que você tivesse esquecido algo e voltasse pra pegar, você me encontraria ali. Me encontraria procurando seus vestígios, catando as migalhas de você que deixara. Catando as manias e sentindo seu cheiro de nada nas camisas lisas de gola apertada. Me toparia num encontro com o arrependimento. O arrependimento de não ter vindo antes, o arrependimento de ter deixado a vírgula ser ponto final. E sabe do que mais? Se surpreenderia me vendo em lagrimas, jogada no carpete em que fizemos amor pela última vez. Eu sempre soube de tudo, eu sempre tive razão no fim de toda briga. Eu só não sabia que você estava ali na porta, me assistindo de camarote, esperando o momento certo de interromper meu show.