O AVESSO DA JUSTIÇA: Os Miseráveis.
 

 
 
                                             
                                               Tenho visto constantemente, na TV, a propaganda do filme OS MISERÁVEIS. Ainda adolescente li a obra  do grande escritor francês Victor Hugo. O conto narra a desventura do cidadão Jean Valjean que, por ter roubado um pão para matar a fome de seus sobrinhos, foi condenado às galés onde passou 19 anos.  Indignei-me na época, mas fui consolado por alguém que me disse: ”- É só uma história, um conto.” Claro que sim, pensei. Afinal por que se faria isto com alguém cuja culpa fora a de passar fome?

                                               Mais tarde, com a vivência dos anos, com as descobertas da capacidade maléfica dos homens em suas ânsias incontidas de poder, das tramas sombrias que enovelam seus pensamentos ambiciosos verifiquei que a historia de Jean Valjean repetia-se, diuturnamente, na vida real em várias nuanças, e, não raras vezes vi injustiças bem maiores e algumas até inimagináveis.
                                               Há cerca de três anos um amigo que tem a excelente  “mania” de ajudar ao próximo, máxime quando este próximo é pobre e desvalido, enviou-me um rapazote com 19 anos de idade rogando que eu o defendesse de uma enrascada em que se havia metido.
                                               Contou-me, então, o jovem ( pobre, negro, servente de pedreiro e que morava de favor num Asilo desativado que outrora abrigara crianças abandonadas)  que havia pegado a motocicleta do pai de sua namorada e batido em outra moto causando estragos nas motos e ferimentos na vítima.

                                                “- Bati por trás, é verdade.” Disse-me ele. “- Mas já fiz um acordo e paguei R$  R$ 2.000,00, sendo R$ 200,00 por mês”, e, me mostrou os recibos de 10 depósitos de R$ 200,00 que fizera em nome da vítima.
 
                                                Disse, também, que havia sido condenado pelo Ministério Público a pagar um salário mínimo em beneficio de uma Instituição de Caridade e mostrou-me o recibo do depósito feito.

                                               -Então, qual o problema-  indaguei. Houve um acordo e você o cumpriu. Tanto na cível como na criminal.

                                               Ele, então, tirou do bolso um papel dobrado e amassado e me entregou. Vi que era uma citação judicial para que ele respondesse a um processo onde o autor ( a vítima)  lhe cobrava  perdas e danos, lucros cessantes e mais danos morais, tudo num total de cerca de R$ 20.000,00 relativos ao acidente narrado.
 
                                              Em quase trinta anos de advocacia conheci todo tipo de clientes, todo tipo de promotores e todo tipo de Magistrados. Dos últimos aprendi diversas definições:  Há Magistrados filósofos ( expõem em longas sentenças e em cansativas audiências teses filosóficas que , na prática, entretanto, em nada contribuem para a solução das lides).  Já vi um que citou, em audiência,  Cícero,  o grande filosofo da Roma antiga, para uma servente de  colégio público. Depois ela me perguntou o que o ex-marido dela ( cujo nome era  Cícero) tinha a ver com tudo aquilo.

                                               Há os Magistrados “ping-pong” ( não sabem decidir, e, despacham inocuamente prá lá e prá cá fazendo com que os advogados apresentem petições e mais petições, até que ele , Magistrado, saia da Comarca e não tenha que decidir). Estes são os mais comuns.
  
                                                            Há, ainda, os Magistrados “esponjas”. (Citam todos os doutrinadores e trazem à colação toda a jurisprudência semelhante ao caso. De sua lavra mesmo, nada.) Ao final quem decidiu a questão foram os mestres renomados e os Ministros, não ele. Lembro-me  de  um que citou quatro renomados civilistas e transcreveu outros tantos arestos do STJ. De seu mesmo somente o dispositivo: “ De todo o exposto com respaldo na doutrina pátria e na jurisprudência dominante JULGO PROCEDENTE o pedido inicial” , etc., etc.

                                                Mas, de todos, os mais interessantes são os Magistrados que se intitulam Positivistas ( Só agem em feitos onde não existem partes importantes. Ambas são carentes. Então escolhem a parte que lhes parece a “ a mais indefesa” e sapecam em cima dela o Dura Lex Sed Lex que, em outras ocasiões vira “Dura lex sed látex”). São abnegados defensores da letra fria da  lei; não porque pensam realmente assim, mas por total  falta de sensibilidade para interpretá-la  e esclarecê-la  aplicando o verdadeiro sentido da norma em prol da justiça que é preferencial ao direito.
                                               Mas, paremos com digressões e voltemos ao nosso caso. 

                                               Passados alguns bons meses lá fomos nos para a audiência. E quem encontramos  judicando?  Uma Magistrada positivista!  Nada a convenceu de que havia um acordo. Decidiu, de plano. É culpado? Vai pagar.
 
                                              Embalde foram as argumentações de que o aprendiz de pedreiro  ganhava um salário mínimo mensal, e que a vítima, embora pobre, também, era proprietário de uma pequena oficina de concerto de motos, além de já ter feito um acordo e recebido.  

                                               -“ O que está na CTPS nem sempre é o valor real que se ganha”. Argumentou a Magistrada.
 
                                              Evidente que o processo se arrasta até hoje, passados que são mais de três anos. Jamais chegará ao fim porque não existe esta possibilidade. Ainda bem que não vivemos no século XIX, tenho pensado bastante aliviado. Já imaginou? Um cara ser preso por não ter dinheiro? Pior que as nossas cadeias são piores que as galés; pelo menos lá se exercitavam remando...

                                               Nunca mais vi ou soube do menino pobre, preto e servente de pedreiro do qual estava sendo cobrado R$ 20.000,00 por uma batida de moto, até ontem 05.07.2013, quando recebi um telefonema do Cartório Criminal. A diligente serventuária queria o endereço dele para intimá-lo.
  
                                             “Não sei,-  respondi. –“ Mas, intimá-lo de que? Perguntei:

                                               Disse-me ela: “- É que o Promotor verificou que o depósito em nome da Instituição foi feito através de envelope no caixa eletrônico do banco, e, mesmo  com o comprovante ele não aceita. O depósito tem que ser feito na boca do caixa”.
                                               Quedei pasmo. Não soube o que dizer e apenas respondi que não sabia de seu paradeiro e nem era advogado dele naquela causa criminal.
 
                                              Então, curioso, fui conferir o andamento do caso, e,  estupefato verifiquei que já haviam expedido mandado de citação e marcaram audiência de instrução para agosto de 2013. Penso que vão apurar porque o infeliz depositou no Caixa Eletrônico e não na boca do Caixa. Até que se fosse no século XIX “ a boca do caixa” seria uma coisa moderna, mas em pleno século XXI?     
  
                                             Esqueci-me de dizer, no inicio, que Jean Valjean foi condenado há 19 anos nas galés por ter, também, tentado fugir várias vezes de seus algozes. Pegou esta cana toda porque  sempre foi encontrado por seu famigerado perseguidor: O Inspetor Javert.        

                                               Procurei o meu amigo e ele me disse que o rapaz deixara a cidade e não sabia de seu paradeiro.
  
                                             Bom. Aqui quando a pena de prestação de serviço à comunidade não é cumprida e o devedor não é encontrado ela é convertida em prisão. É o que está na lei. Se funciona para todos, não sei.

 
                                               Só sei que espero que o nosso “Jean Vajean brasileiro” nunca seja achado, já que cumpriu tudo que ACORDOU com os seus “Inspetores Javert!s”.

Nelson de Medeiros
Nelson de Medeiros
Enviado por Nelson de Medeiros em 07/07/2013
Reeditado em 07/07/2013
Código do texto: T4375953
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