Amorcalipse

Um nervoso Seixas encosta seu Voyage velho em frente ao portão de um sobrado. Ajusta o óculos com o dedo indicador e dá 3 buzinadas, como combinado. Minutos depois, o portão se abre. Uma assustada Kelly olha para os lados para atravessar a rua, carregando uma surrada mala marrom clara.

Bate a porta do carro, e só interrompe o silêncio depois de alguns longos segundos.

- Aí Seixas... O que será de nós?

Só a expressão de medo naquele rostinho iluminado pelo poste da rua fazia Seixas querer contar tudo. Abraçá-la, protegê-la. Mas seguiu firme.

- Não há motivo para pânico, Kelly. Vai dar tudo certo.

O carro ganhou as ruas e seguiu seu rumo pela madrugada.

- Que sorte a minha de ser amiga do astrólogo...

Seixas a interrompe.

- Astrônomo.

- Isso mesmo, astromono. Do astrólogo que descobriu esse asteróide terrível. Onde fica esse abrigo subterrâneo?

- A alguns quilômetros daqui. O governo já arranjou um lugar para toda sua família, fique tranquila. E preparei uma série de mantimentos para esse tempo de reclusão.

- Ai, que bom. O que você trouxe?

- Ah Kelly, coisas importantes. Um purificador de água e outro de ar, sementes, painéis solares e alimentos variados.

- Jura?? Você trouxe Bis Branco? Você sabe que não vivo sem Bis Branco, Seixas.

Antes que pudesse impedir, Kelly se esticou entre os bancos de frente e abriu as caixas de papelão.

- Kelly! Não mexa aí! Tem um equipamento delicado, que pode...

Mas já era tarde.

- Seixas, o que é isso?

Um silêncio de tensão envolveu todo o carro.

- O mundo vai acabar e tudo que você trouxe para passar o apocalipse é isso?

- Kelly, você abriu a caixa errada. Todas as outras são só de itens básicos para nossa sobrevivência.

Nem o próprio Seixas se convenceu. Perplexa, Kelly foi tirando item a item.

- Vinho Lambrusco? “Ghost – do outro lado da vida”? Panela de foundie? Edredom?

Burro. Idiota. Imbecil. Seixas olhava fixo para a estrada, arrasado com o fracasso do seu plano. Agora ele nunca mais veria Kelly. Talvez a veria, no dia de visita na cadeia. “Tentativa de sequestro”. Tentativa de um desesperado. De um apaixonado.

Seus pensamentos foram interrompidos por dedos macios, que alisaram a parte externa de sua mão como se fossem trocar de marcha juntos. Seixas relutou em olhar para o lado. Mas logo começou a desistir da ideia com o canto do olho. E aos poucos, viu por completo o sorriso que vinha do banco do passageiro.

- Pois então, que venha o fim do mundo.

E deslizando pela estrada sinuosa da serra, o carro seguiu para seu abrigo subterrâneo na Ricardo Jafé.