2 - VÁ DE TÁXI

A noite chega de mansinho, vai avançando como se fosse a maré no manguezal. Pronto ocupou o manguezal e parece que não irá embora, então não há o que fazer é só esperar. Este interregno é preenchido com memórias surpreendentes, só memórias, pois não há possibilidade de renovação, assim como as marés. Estávamos bem em frente ao Palácio Piratini, os carros, os motorista, os assessores e os ajudantes, destes últimos lembro que alguns ajudavam a abrir portas, outros a recolher bouquets de flores. Olhei aquelas imensas paredes, solidas revestidas de granito rosa, assim me pareceram, a movimentação frenética dos auxiliares e por alguns instantes me indaguei sobre o que levava as pessoas a serem tão prestativas com as autoridades e com os políticos. Não é inveja, são apenas fragmentos que vagam pela maré alta. Ao mesmo tempo pensava se teria sangue tão pacifico para estar sempre sorrindo, sem um momento sequer, por um momentinho só, dar uma resposta azeda, quando alguma autoridade fosse autoritária. Repentinamente a realidade voltou e todos foram tomados de um reboliço só, vinham o Governador, secretários, assessores, mais de cinquenta pessoas. Todos se acomodaram, inclusive o motorista e dois seguranças no carro que eu estava, então um assessor alojou-se no assento para mim reservado. Reclamei e o assessor respondeu para que eu pagasse uma carona em outro carro, não esperei a maré baixar, agarrei-o pela gola do sobretudo, um sobretudo preto de lã bem forte, na altura do peito, ele não devia pesar mais do que 50 Kg e num movimento prevalecido postei-o de pé na calçada como se fosse um saco de batatas e disse que ele pegasse um táxi. Esperei um dia, dois, três, quinze um mês, então percebi, que havia me safado e também livrado a cara de outros colegas. No caminho me arrependi, acreditei que ele tinha me confundido com um ajudante efetivo, que presta seus serviços por convicções ideológicas. Mesmo que eu tivesse qualquer ideologia afundaria na maré. Ao chegar no Centro Administrativo outra espera nos aguardava, nesta espera o motorista foi puxando conversa e perguntou se eu conhecia aquele cidadão que eu tinha arrancado do carro, respondi que não, logo vi, disse ele, aquele que o senhor arrancou do carro é tal secretario. Era uma secretaria que inventaram para fazer frente ao Mercosul, mas nem carro o secretario tinha. Assessores, ajudantes são abnegados servidores estatutários, ou CCs, que necessitam ter um perfil diferente do meu. Agora que a maré baixou, fico feliz, pois vejo que não sou anormal. Responder atrevidamente aos políticos, quando eles tentam nos inferiorizar, nos pisotear, nos tratar como descartáveis é a ordem do dia. Depois deste episodio não fomos mais destacados para ajudar. Um dia um colega disse que a esposa do Governador recomendara assim, pois não estávamos preparados para sermos ajudantes, os de ordens.

Do livro: Passagens de minha vida - 2013 - 2020

ItamarCastro
Enviado por ItamarCastro em 05/07/2013
Reeditado em 30/11/2019
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