Seres Invernais

Tenho os meus motivos para não gostar do inverno. Por exemplo, estar neste exato momento com quilos de cobertores sobre as minhas pernas, enquanto as minhas mãos congeladas dançam sobre o teclado tentando, em vão, se aquecer.

Ter de sair, corajosamente, debaixo das cobertas diretamente para o frio das sete da manhã e vestir camadas e mais camadas de tecido, até o meu corpo virar um caroço imóvel, mas quente. Ver minhas mãos duras e murchas, após lavar a pilha de louça com a água que sai, naturalmente, refrigerada da torneira e ter as mangas do casaco de lã encharcadas. Ter de tomar banho em água escaldante e depois tiritar de frio ao me secar no meu banheiro que parece estar localizado em algum bairro do Polo Norte. Deslizar o creme frio sobre minhas canelas ressecadas e esbranquiçadas e depois vestir pijama, roupão, polaina, pantufa e me sentir o próprio palhaço Bozo, só que na frente da TV.

Tenho atenuantes físicos que embasam a minha ojeriza pelo inverno: pés e bumbum gelados que me tornam tão irritada quanto em surto de TPM; lábios craquelados; nariz com goteira; amígdalas em constante manifestação conflituosa.

Enfim, preencheria facilmente várias folhas A4 com justificativas que me fazem desejar ardentemente regressar ao outono, mas de nada adiantaria.Para chegar aos jardins floridos da primavera é preciso passar pelos dias cinzas do inverno.

Gosto de brincar, assim, de coisas e vida, pessoas e estações e comparo este período gelado, o qual sou obrigada a transcorrer, com as pessoas, igualmente, escuras e frias com as quais preciso conviver.

Confesso que preferiria comandar esta brincadeira de gente. Gostaria de, com dedo em riste, apontar para alguns narizes imponentes e dizer em alto,forte, mas em educado tom: “ Você tá fora! Não brinca mais comigo”.

Lógico que já fiz isto, mas não antes de ter sentido todos os efeitos colaterais da frieza impiedosa que emana do coração de alguns seres que se dizem humanos. Aliás, não existe nada que congele mais os sentimentos até quebrá-los irreparavelmente, do que atitudes humanas de quem consegue ser mais árido do que o próprio inverno.

De tanto brincar de coisas e pessoas, estações e vida, descobri que o mundo está cheio de gente congelante, as quais é preciso ter muita coragem para encarar, seja às sete da manhã; seja ao meio dia. Pouco importa em que altura esteja o sol, elas simplesmente esfriarão até a última fagulha de calor que existe em você. Pessoas que com a frieza de suas palavras conseguem fazer tremer embaixo de um sol de quarenta graus.

Existem pessoas, das quais se precisa proteger, que tentarão de todas as formas transformar você num caroço imóvel, embora quente. Pessoas que, pela insensibilidade, farão você murchar e se sentir o próprio palhaço Bozo na frente do espelho.

Tenho atenuantes físicos que justificam meu pavor por estes seres invernais: pés, bumbum e todo o resto do corpo em que meu sangue passeia, congelados; lábios mordidos; nariz arfante; amígdalas inchadas pela vontade de mandar o tipinho gélido para o quinto dos infernos, que é para derreter de vez.

Escreveria um livro inteiro com motivos que me fazem querer desviar o meu caminho das pessoas escuras e frias, mas de nada adiantaria. Para colher a flor no alto da montanha é preciso galgar as pedras que ficam embaixo.

Infeliz ou felizmente, como as estações, existem pessoas que transformam coisas em nossas vidas e outras fazem das nossas vidas uma coisa. Cabe a nós conseguir passar por todas elas sem perder a sensibilidade de ser feliz na primavera.

Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 04/07/2013
Reeditado em 04/07/2013
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