Minha Alface Silente
Minha Alface Silente
O aparelho de TV, ao longe, passava algum tipo de documentário ou reportagem sobre alimentação alternativa. Não sei bem ao certo o foco principal do programa, mas pude ouvir, meio atrapalhado pelo som que eu mesmo produzia ao passar a lâmina de minha faca pelo lado áspero da pedra de afiar, que alguns entusiastas – sempre são entusiastas – defendiam a opção vegetariana. Um leve sorriso se estampou nos meus lábios. Olhei para a picanha que me esperava, lânguida, entregue, deitada de modo convidativo sobre a tábua de carnes e comecei a prestar mais a atenção ao discurso inflamado. O blá, blá, blá era comprido. O meu sorriso sumiu, deu lugar ao riso. Era uma profusão de argumentos desconexos que mais pareciam uma colcha de retalhos. Mas o pior não eram os retalhos: pior era que parecia faltar linha para fazer a costura.
Não sei quem falava, nem vi o sujeito. Contudo, posso imaginar a cara da peça só pelo jeito de se expressar: cabelos crespos e meio desgrenhados; barba rala (aquelas tipo um fala e o outro não escuta); braços fininhos com alguns cordõezinhos encardidos amarrados nos pulsos e semi protegidos por uma blusa de algodão cru; calças tipo pescador e também de algodão; alpargatas com sola de corda e uma bolsa de tecido a tiracolo.
Bem, definida a imagem da figura, passei a atentar para a prosopopeia flácida. Natural. O primeiro argumento sustentava que a alimentação vegetariana era mais natural. Fiquei espantado com a possibilidade de que minha maravilhosa picanha pudesse ter vindo de um boi sintético. Parei de afiar a faca, queria ouvir mais. Na sequência, o rapaz sustentou que o homem não fora criado para comer carne. Seguramente, este incauto nunca estudou antropologia. Na dúvida, fui até o banheiro me olhar no espelho. Os caninos ainda estavam lá. Foi um alívio. Retornei aos meus afazeres que, então, já incluíam ouvir a reportagem.
Ao chegar à cozinha, pude ouvir que o entrevistado defendia que a alimentação vegetariana era mais saudável, que alimentos orgânicos eram melhores e faziam bem. Este argumento remexeu com minha memória. Não que eu ache que vegetais não façam bem, mas isto está longe de concordar com uma alimentação exclusivamente vegetariana. Mas o fato é que eu tinha lido, não sei onde, um trabalho sobre alimentação equilibrada. Nada se falava de vegetarianismo. O mote era o equilíbrio. Além disso, em outro trabalho, aí, sim, sobre alimentação vegetariana, vi que nenhuma organização ou instituição oficial defende tal tipo de alimentação. Lembrei de um antigo colega que enveredou por estes caminhos e, tempos depois, começou a ter desmaios frequentes. Receita do médico: coma uns bifes bem sanguinolentos. O cara tava com uma anemia braba. Não preciso dizer que a cura foi rápida e prazerosa. Veio-me à mente, também, a questão orgânica, dos alimentos orgânicos. Lembrei-me de uma vez em que inventei de plantar cenouras. Plantei e colhi. Quer dizer, plantei cenouras. O que colhi, bem, aí não tenho muita certeza. Mas lembrava um pouco aquelas cenouras que vemos em feiras orgânicas. Aliás, feiras orgânicas são um caso a parte. Pensar em alimentação saudável comendo aquelas coisinhas mirradas parece uma contradição. Não me refiro a qualidade ou as vantagens evidentes para a saúde de um produto sem venenos ou químicos diversos, mas a aparência deixa muito a desejar, literalmente.
O fio de minha faca estava quase pronto para o nobre trabalho quando o militante, digo “militante” porque naturebas sempre o são - seja lá do que for - , passou a falar de “forma física”, caminhadas, corridas e coisas tais. Mais uma lembrança me atropelou. Certa vez, numa noite de churrascada, ouvi de uma grande amiga uma observação interessante: “correr no parque não emagrece, só vejo gordo correndo”... Foi divertido lembrar daquela noite.
Para minha sorte, os espetos estavam limpos. Fui até a churrasqueira para acender o fogo. Passando pela sala de TV, finalmente pude ver a estampa do entrevistado. Errei por pouco na descrição do fulano. Só me esqueci dos brincos. Lembrava, de longe, o capitão Jack Sparrow.
Fogo encaminhado, voltei ao trabalho com as carnes. O meu amigo da TV continuava com a ladainha. Desta vez a questão era o metano, a flatulência farta dos bovinos. Como se gente não peidasse... Sim, porque se a questão é proteger o planeta de tantos puns, melhor é eliminar pessoas, afinal, tem muito mais gente do que boi. E mais, são pessoas que criam e comem os coitados. Mas o pior é a dimensão que tentam dar ao fato. Nosso planeta é composto por 75% de água, 5% de desertos, 5% de áreas montanhosas e 3% de florestas. Sobram 12% que são ocupados por nós e alguns bois. E a culpa é dos bois. Pode? Mas a conversa continuava muito alegre. Era contagiante a convicção do cabra. Comecei a olhar para o alface com outros olhos. Ele parecia rir para mim. Sacudi a cabeça para afastar aquele sorriso estranho e verde. O rapaz, então, sustentava que era horrível trucidar seres vivos. Um argumento, digamos, humano. Porém, pergunto: o que são seres vivos? O menino parecia defender que seres vivos berram. Percepção, assim... um pouco restrita da vida. Ainda mais para quem se arvora em defesa da natureza. Mas, enfim, acho que é da natureza do ser. Daquele ser, evidentemente. Mais uma visão chegou a mim. Numa certa tarde, logo após o almoço, minha filha comentou uma conversa que teve com uma amiga que estava empolgada com o vegetarianismo. O maior argumento a favor do vegetal, pasmem, era o grito desesperado, segundo ela, dos animaizinhos condenados à morte. O grito, no caso da menina, determinava a opção. Impressionante, uma pessoa optando por uma forma de alimentação pela absoluta falta de protesto por parte do alimento. Minha filha comentou: “feijões não gritam”. É verdade, mas não estão mortos. Experimente colocar alguns dos feijões que estão prestes a fazer parte de sua feijoada natureba em um algodão molhado. Em poucos dias você perceberá que assassinou centenas de embriões.
Mesmo com todo aquele nhenhenhé sobre gritinhos, cortei a picanha, sem dó, em medalhões generosos e acomodei no espeto. As brasas já estavam vermelhinhas, no ponto. Escolhi a altura adequada, levando em conta a temperatura da churrasqueira, e coloquei os espetos. Em poucos minutos a gordura começou a pingar. Que cheirinho delicioso. Juro que nunca senti prazer parecido cheirando um chuchu. Por falar em aromas, senti o gosto na ponta da língua. Afinal, o olfato é irmão da gustação. A saliva começava a se avolumar. Cheirinho danado este.
Na sala, como a querer me desafiar, o menino dos dedos verdes falava entusiasmado sobre o sabor dos pratos naturais. Do sabor eu não lembro muito bem, mas da conversa não posso me esquecer. Ocorre que, numa noite quente fui a um jantar em que uma menina, adepta ferrenha da cozinha natural, se esforçava para fazer almôndegas... de soja. Conversa vai, conversa vem e pronto. A travessa estava na mesa. Provamos e elogiamos. Não era bem o que eu esperava, mas não era ruim. O que ficou estranho, já que estavam me demonstrando as possibilidades e superioridades da cozinha vegetariana, foi a pergunta que veio a seguir. “Não parece carne?” Confesso que achei uma contradição. Era como se eu fizesse um bife para um vegetariano, para convencê-lo a mudar de hábitos e perguntasse: não parece uma berinjela? Enfim, o fato é que não era ruim, mas não tinha nada de parecido com carne.
A entrevista na TV terminou bem na hora em que eu ia tirar o primeiro espeto. Estava no ponto. Macio, cheiroso e sanguinolento. Preparei a salada e coloquei a mesa. Pensava em como foi divertido ter a companhia do menino natureba naquela manhã, nas minhas lembranças e nos silogismos sofísticos – contração sofisma/sofisticado - dos meus argumentos irônicos, e feliz por saber que esta turma não gosta de fazer mal aos animais. Preparei a salada com vários vegetais (sei bem da importância deles na alimentação) e alguns grãos. Tudo equilibrado. Comecei a refeição. A carne estava mal passada, quase mugindo. Encarei o alface, ele permanecia mudo, resignado com o seu fim trágico. Lembrei-me de minha filha e pensei: alfaces também não gritam, coitados.