Mais uma da Dona Marocas
Talvez esta crônica fará com que meus leitores me julguem um tanto quanto prepotente e pretensioso, mas tudo que nela descreverei é a mais pura verdade: quase nada do que aprendi em toda a vida foi graças a um professor, e muito, muito poucos foram os professores que tiveram algum impacto positivo em meu desenvolvimento intelectual.
Por mais que meu relacionamento familiar sempre tenha sido tão conturbado, to say the least, uma coisa positiva que posso dizer dos dois que me conceberam é que me incentivaram à pesquisa independente – tudo aquilo que aprendi foi por conta própria, graças à perusal de incontáveis livros que tive ao meu dispor. Assim sendo, por toda a infância e por grande parte da adolescência, meu intelecto era muito mais avançado que o dos professores em si. No entanto, posso garantir-lhes que nunca fui aquele tipo de aluno pedante que gostava de testar o conhecimento dos professores – apesar de conhecer vários que se encaixam nesta descrição.
Voltando, porém, a mim – minha inteligência excessiva resultou em vários de meus professores querendo diminuir-me, pois lhes feria o ego, e não consigo recordar-me de nenhum, fora um ou quem sabe dois, que durante minha vida me deram qualquer incentivo ou apoio moral em minha então incipiente carreira; hoje sei, porém, que a culpa não é deles, e sim do estado deplorável de todas as instituições deste país, então não guardo mais qualquer mágoa – igualmente, muito fácil sempre me foi zombar deles, o que para mim já é retribuição o suficiente.
De todos os professores que amo odiar, a figura mais pervasiva é a da Dona Marocas, com seu nome diretamente retirado dos quadrinhos infantis que tanto amava, e que já foi protagonista en passant de uma crônica anterior; hoje, em sua carinhosa memória, haverei de dedicar-lhe mais algumas palavras que expliquem mais um pouco de nossa relação, e entreter a meus leitores que tanto, tanto amo com uma história da qual, desta vez, eu próprio estrelei.
O Ensino Médio foi uma das épocas mais negras e infernais de minha existência, mas o que me fazia chorar e ranger os dentes era a Dona Marocas, em meu último ano. A princípio, até poderia ter gostado dela, se não houvesse ela cometido duas falhas fatais a meus olhos: a primeira é ser um dos piores tipos de pessoa, que é aquela que se força a ser engraçada para atrair a atenção de seu interlocutor – ainda mais quando se é uma pessoa de 30 e tantos anos falando a adolescentes de 16. Nunca confiei em pessoas que aparentemente são amigáveis em demasiado: me parece que escondem algum segredo sórdido. A segunda foi algo de cunho pessoal, que deixou-me tão ultrajado que não tive outra escolha fora considerá-la uma inimiga.
Queiram lembrar-se que, naquele tempo, eu não era a pessoa morosamente entediada que sou hoje, e que escreve tão somente porque o deve: esperava, em minha tola inocência, que meus poeminhas melosos repletos de “ahs!” e “ohs!” me trariam alguma glória e que me colocariam junto ao Panteão dos antigos. Muito que bem! Escrevi uma mensagem carinhosa à mestra, pedindo, quase suplicando, para que analisasse meus então mais recentes poemas. Pouco tempo depois, fui respondido com algo que continha de tudo um pouco – dicas para adentrar qualquer faculdade de Letras, listas de cursos de Letras, dicas de estudo… mas não uma crítica construtiva e salutar a meus escritos. Não que a preocupação com meu Ensino Superior não fosse bem-vinda, mas já naquele tempo pensava que não viveria para que o dia em que adentraria uma faculdade chegaria – feliz ou infelizmente vivi, legando à posteridade muito mais que uns 10 textinhos piegas e, hoje, sepultados no oblivion. Há males que vêm para o bem…!
Mas foi a partir daí que iniciei minha rivalidade com a Dona Marocas. Por mais que fosse um aluno nota máxima, gostava de perturbar-lhe as aulas com comentários sempre mórbidos que faziam todos torcerem seus narizes (e que me trouxeram vários problemas com os higher-ups), e visivelmente zombar de sua pessoa veladamente. Se ela era demasiado paciente para comigo ou demasiado sonsa para entender os gracejos, só Deus o sabe…
Eis que, num belo dia, fui forçado a apresentar um trabalho escolar – me recordo que meu humor estava particularmente azedo naquele dia, tornado mais grave pelo fato do trabalho ser sobre algum conto de Clarice Lispector, escritora esta que odeio com todas as minhas forças – doa a quem doer. Subsequentemente àquela aula haveria uma prova (de Biologia, se a memória não falha) e meus colegas estavam, em falta de melhor palavra, um tanto inquietos. A Dona Marocas não conseguia acalmá-los, então fiz o que sabia fazer de melhor: meti-lhes medo.
Atirei um apagador ao chão, por pouco errando os pés da professora. Gritei. Não sei o quê, mas gritei por bons três minutos. Só parei ao perder o fôlego. Toda a sala congelou; até mesmo quem queria rir não conseguiu. A Dona Marocas se encolheu a um canto, tremendo de medo. Fui mandado à diretoria, onde a mui compreensiva diretora deu ouvidos às minhas complaints e tudo ficou por isso mesmo: um bom preço a se pagar pela expressão de puro pavor no rosto da professora.
Desde minha formatura, nunca mais a vi, tampouco procurei vê-la; mas até hoje, quando a tristeza me abate e quero recordar-me das “ilusões que eu tive”, penso neste dia, e no temor da Dona Marocas – afinal, ter um mestre marcante, mesmo que pelos motivos errados, não só é uma boa diversão como também um ótimo argumento a favor do homeschooling.
(São Carlos, 24 de janeiro de 2024)