A velhice
" A vida é todo um processo de demolição. Existem golpes que vêm de dentro, que só se sentem demasiado tarde para fazer seja o que for, e é quando nos apercebemos definitivamente de que em certa medida nunca mais seremos os mesmos." Fitzgerald .
Acho que foi ontem. Sim, agora me lembro bem, foi ontem!
Tinha acabado de almoçar e estava no meu escritório, onde costumo meditar e ler algum livro, de preferência biografias. Estava justamente lendo a biografia de Roberto Marinho, quando a minha secretária aparece na minha frente e diz: - “Tem um camarada querendo falar com o senhor”. Disse, sem pensar: - “ Deixa ele entrar”. O cara entrou. Era um homem alto, bem branco, careca e com um sorriso alvar no rosto. Pensei com meus botões: -“Mais um que vai me pedir dinheiro, ainda mais com esse sorriso todo”.
Não era isso, o cara queria desabafar. Começou dizendo que sabia da minha formação de psicólogo e que o povo da cidade dizia que eu era bom de conselho e que sempre tinha uma frase de efeito para qualquer ocasião.
Fiz ver ao careca, ainda um jovem senhor, aparentando uns cinquenta e tantos anos, que eu não sabia nada. Esses comentários sobre mim eram bondade e simpatia do povo, sem nenhuma razão de ser. E concluí, assim: - “ Meu querido, eu sou uma ilha de incertezas por todos os lados." O carequinha só faltou me beijar as mãos, chegou a se ajoelhar diante de mim, exclamando: - “ Não senhor, o povo tem razão, essa sua frase foi maravilhosa e já está me fazendo bem”.
E aí contou o que lhe afligia. A sua aflição era com a proximidade da velhice, com a sua decadência física, etc, etc. Confesso ao leitor que me lê que logo vislumbrei alguma impotência no homem. Aquela careca poderia ser um sinal...
Perguntei, timidamente, mas, afinal, o que o senhor acha da velhice?
A resposta veio rápida: - “A velhice é uma tragédia. E quando digo isso às pessoas elas me repreendem, não entendem essa realidade. Procuram racionalizar e dizem que ser velhinho é muito bom. O que o senhor tem a me dizer?”
Interessante, sentia a mesma implicância com a velhice e concordava com o romancista americano Fitzgerald. A vida não passa de um processo de demolição.
Lembrei-me do que meu pai contava sobre meu avô: - “O pai velho, com a idade, foi se apagando: surdez, cegueira, memória falhando, doenças e mais doenças”. E papai completava afirmando que já conheceu o pai dele decadente, aquele que foi a pessoa mais encantadora e o maior orador da cidade dele.
Veio-me à memória o grande jogador brasileiro Newton Santos. Foi denominado “a enciclopédia do futebol”. Pois bem: certa tarde, passo pelo Maracanã, o antigo Maracanã. (hoje Maracanã da Fifa). Jogavam Botafogo X Madureira. Início do segundo tempo, aproveito e entro no estádio. Naquele tempo deixavam entrar de graça na chamada geral (o torcedor ficava em pé na beira do campo), quando começava o segundo-tempo. O que vejo, logo nos primeiros lances: Newton Santos sendo driblado por um bisonho atacante do Madureira. Uma, duas, três, mil vezes, o atacante passava facilmente pelo grande jogador. No dia seguinte, "a enciclopédia do futebol " se aposentou... Era a decadência física.
Não poderia mentir para meu visitante. Dei-lhe total razão. Já ia me despedindo do jovem senhor desiludido, dando a desculpa de um compromisso inadiável, quando ele me pede uma frase consoladora, algo que o sustente, que lhe dê algum sentido para esta vida.
Fiquei sem palavras, e, olhando o livro do Roberto Marinho, vi uma frase gloriosa do biografado e que o Nelson Rodrigues dizia ter sido a coisa mais linda que já ouvira. Tratava-se de um sujeito que havia traído o Marinho. Eis a frase: “ Eu prefiro ser traído a desconfiar de todo mundo”.
O leitor intrigado dirá: - “ Mas o que tem essa frase com a nossa decadência física?” Tem tudo! Notei que o careca se sentia traído pela natureza que lhe dera a vida e que depois lhe tira a vida sem a menor cerimônia. A frase pode não estar adequada para o caso que acabei de narrar, mas o careca achou coerente a ilação com a traição e se despediu com um largo sorriso.
A visita valeu também para mim. E pensei: - “ A minha função, apesar de todos os desalentos, ( e põe desalento nisso) é prosseguir...