Na fazenda, costuras e retalhos
.:.
Estávamos na gruta da fazenda, todos cansados e sedentos por água. No telhado do sobrado do caseiro, no quintal, havia uma bica improvisada, feita de talhes de bambu, que se debruçava ao longo das calhas, convidativa... Como obter água, se do céu não brotava nenhuma gota? O que tínhamos diante dos olhos era a secura do chão ressequido que assolava a Região de Minas mais castigada pela estiagem.
Eu e meus primos, alheios ao temor que anuviava o rosto do Tio Zeca, queríamos era viver – tínhamos sede, é verdade, mas era sede de viver, viver tudo ao mesmo tempo! A rapidez com que esquecíamos as privações da natureza e as limitações financeiras do tio, parecia tão normal que o tempo parava diante de nós. Bastava o tio Zeca dar as costas – era o sinal – e corríamos, buscando novas travessuras. Foi assim, garimpando aventuras, que rasguei as calças na cerca e fiz minha prima Damiana, filha caçula do tio Zeca, ralhar os joelhos na ponte onde, diz o povo, todos os dias, à meia-noite, aparecem as assombrações. Damiana era minha confidente...
A meninada toda da região era traquina. Aliás, todas as crianças do mundo são irrequietas! Meu avô Mundico me falava que ‘criança quieta, pode ir atrás minha filha, é criança doente’... Como sinto saudade do vô. Ele nos contava cada história! Minha mãe discordava – até brigava com ele, falando que isso me destruiria, mas o vovô estava certo: criança precisa brincar, reinventar travessuras, recriar o mundo e os mundos!
Respirávamos o vento puro das Minas Gerais. Por trás dele, a história de um povo aventureiro, cheio de rituais e esquisitices... No vilarejo, o tempo passava rapidamente e, sem que nos apercebêssemos, vinha a noite, serena e mansa. Exatamente às dezoito horas, quando findava a última badalada da Ave Maria, os velhos se achegavam. Sentavam. Acendiam o cigarro de palha, retiravam os chapéus desgastados pelo tempo e, saudosos, punham-se a contar histórias – eu adorava quando o Sinhô Bastião das Lajes contava a lenda do Pita! Além de ser uma linda narrativa, a lenda me dava mais saudade do meu avô, já falecido. A parte que mais gostava era quando Bastião Sinhô dizia: “Aprendi essa aqui, sinhozinhos, com meu compadre Mundico – um homem de verdade!”
Apesar de ser criança, entendia a afeição e o agradecimento que havia nas palavras do Sinhô Bastião – o velho, analfabeto de pai e mãe, descendente de escravos, aprendeu a ler com meu avô, escondido de todos. Ah, se meu bisavô sonhasse que o filho dele estava em conchavo com escravos! Eu me arrepiava só de pensar... Não cheguei a conhecer meu ‘biso’; tudo o que sabia dele me chegava durante vinhas visitas à cozinha – Maria, nossa preta velha, já estava conosco fazia muito tempo. Contam, inclusive, que ela era filha bastarda, fruto de acasalamento proibido
– Tião – disse. – Hoje é você quem nos conta essas histórias, mas, no amanhã, seremos nós... Pena que somente nas férias venho aqui. A cidade é muito agitada.
Ele sorria agradecido. Os demais velhinhos anuíam, tirando o chapéu em reverência ao meu comentário e eu ficava morta de feliz, causando inveja aos meninos assistentes. ‘Por que os meninos implicam com as meninas, hein?’ Isso sempre me incomodou.
Nessa hora, depois de contar a história do Pita, Seu Tomé, um velho tinhoso e muito temido durante o dia, mas amável demais quando se punha a contar histórias, inicia um canto ancestral que, segundo ele, trazia chuva:
“Água de beber, bica no quintal...”.
O tempo parou e olhamos todos para o céu. À noite, a escuridão do vilarejo, sem iluminação elétrica, impedia-nos de ver o sabiá do Seu Joaquim, a laranjeira azeda da casa da Dona Mazé, as mangas-rosas de Dona Quequé... Mas, de repente, forte chuva nos banhou, molhando varandas e córregos, onde olhares furtivos e curiosos de moradores felizes, repetiam: “Água de beber, bica no quintal...”. – Parecia uma prece.
Minhas férias acabaram e, na despedida, antes de voltar para a cidade grande no jipe do tio Aleixo, decidi deixar meu coração lá. Um dia eu volto, prometi.