A CIDADE DE DIAS D’ÁVILA E SUA HISTÓRIA DE LUTAS.

Esse lugar lá pelos idos do ano de 1600 foi batizado por Feira Velha do Capuame. Muito depois, simplesmente Feira Velha e por fim Dias d’Ávila, em homenagem ao seu fundador Francisco Dias d’Ávila, filho do fidalgo português Garcia d’Ávila, que aqui chegou em 1549, na caravana de Tomé de Souza.

Muito tempo depois, lá pelo século vinte, os moradores do lugar, que à época pertencia ao município de Mata de São João, divulgavam aos quatro ventos as qualidades medicinais da água do Rio Imbassaí, como também de lamas de cor preta e cor branca encontradas às suas margens. Um jesuíta francês, botânico e naturalista que veio morar por aqui, Padre Camilo Torrend, ficou curioso e mandou amostras dessa água para serem examinadas em laboratórios europeus, comprovando assim o que a comunidade já sabia e divulgava a boca miúda. Os laudos trouxeram a constatação de que as águas eram mesmo medicinais com alto poder de cura.

E assim nasceu o local de veraneio mais famoso do Brasil. Dias d’Ávila transformou-se em um balneário dos mais conhecidos e agradáveis e, por estar localizado muito perto de Salvador, fez com que viessem pra cá os veranistas que aqui construíram belas chácaras, onde vinham descansar do trabalho na cidade grande.

O principal meio de transporte da época era o trem, apelidado de Pirulito, que saía diariamente de Salvador, às seis da tarde, e passava por aqui por volta das oito da noite com destino a Alagoinhas. Quando vinha de Salvador, por volta das sete da noite, o trem passava num lugar chamado Parafuso e, para mexer com o povo da terra os malandros gritavam do interior dos vagões: “mulher de parafuso é porca!”. Os parafusenses de terra cobriam o trem de pedras. O trem possuía dois tipos de classes: A primeira, onde viajavam as pessoas mais abastadas, e a segunda classe, a classe do povão. Andava tão abarrotado de gente que os que não conseguiam entrar no trem viajavam mesmo pendurados nos corrimãos das portas e eram apelidados de morcegos.

Em Dias d’Ávila, os Veranistas, como eram chamados nossos visitantes, passavam o dia inteiro andando pelas nossas ruas de terra, descalços, de shorts ou biquínis, untados de lama preta ou lama branca, ora comprovadamente medicinal. No início da noite nos refrescávamos todos nas águas do Imbassaí. De volta a Salvador, esses visitantes carregavam seus garrafões de água e seus embrulhos contendo a lama, as famosas argilas de coloração preta ou branca, usadas para curar principalmente doenças de pele.

ESSE É O MEU RIO

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Temos lama preta que cura,

Água boa doce e pura,

A mais leve do Brasil

O Rio Imbassaí é famoso

E mesmo pouco caudaloso

Esse é o meu rio!

Então, como se vê, o município teve sua importância exponencialmente elevada em função do Rio Imbassaí. Foi ele que fez com que o município fosse declarado pelo Governador do Estado como Estância Hidromineral em 1962. Assim a cidade passava a ter duas administrações: subordinada ao Município de Camaçari, de quem éramos distrito, e ao Governo do Estado que administrava a estância, nomeando inclusive seu administrador.

VIVA O RIO IMBASSAÍ

Cresci observando o teu correr faceiro

De água enferrujada, cristalina e doce,

A tua voz suave cortando o tabuleiro

Querendo ir, mas como se não fosse.

Quão famoso foste tu, meu lindo rio

A fervilhar de gente no leitinho estreito

Contendo em ti o enorme desafio

De um a um prender num abraçar perfeito.

Tentaram te calar sangrando a correnteza

Como se possível fosse emudecer a alma

De quem nasceu valente na pobreza.

E pra garantir paz, à guerra vai com calma

E quase morto traz no coração a chama acesa

De quem de Deus nasceu da mão na palma.

Por ser um lugar tranquilo, perto de Salvador e possuir um rio de águas com poderes medicinais, Dias d’Ávila passou a atrair muito mais gente que vinha aqui veranear. Assim, o lugar passou a ter grandes chácaras com muitas árvores frutíferas (sapotas, sapotis, jaqueiras, mangueiras, goiabeiras, carambolas, jenipapeiros, etc..) e casas ricas e confortáveis. Esse povo era por nós, filhos da terra, chamados de burgueses e era para eles que vendíamos as nossas iguarias: goiabas, cambubas, muricis, coco piaçava, bananas, laranjas, e mais o resultado da chegada à nossa feira dos montegordeiros, que nos traziam, dentre tantas delícias, a moqueca de folha e o pé-de-moleque. O melhor da nossa mercadoria era reservado para nossos visitantes ilustres, que começavam a chegar na sexta feira e não pechinchavam no preço. A água que bebiam vinha diretamente do Rio Imbassaí, transportada por Seu Félix e outros aguadeiros, em barris de madeira, no lombo de jumentos. Cada casa tinha uma fonte, chamada de cisterna, cavada por João Touro. A profundidade ficava entre seis e oito metros e a água era de primeiríssima.

As construções eram feitas por nossos pedreiros: Bié, Tamburete, Menininho, João Touro, Valter, etc.. No centro da cidade, onde hoje é a praça principal ficava a única padaria, que pertencia a Seu Costa. Como brincadeira, dizíamos que fazia mal comer pão de Costa. Lapinto era o homem das charretes bonitas e confortáveis. Ele transportava os “burgueses” por nossas ruas arenosas e planas. Jessé Bonfim era dono do principal e mais completo armazém da cidade. Manoel da Mata fazia pré-moldados, e sua mãe, D. Sofia, vendia bugigangas na feira. Firmina Preta vinha de Amado Bahia, lugarejo vizinho, mas pertencente à Mata de S. João, e trazia na cabeça um caçuá cheio de cachorros, que eram a sua paixão. Ao lado da estação do trem ficava o Pau do Periquito, na Frente da venda de Valter. O Sargento Lima, militar aposentado vindo de Alagoinhas, costumava vender na sua barraca de feira, além de outras coisas, muita pipoca que trazia de Salvador no trem da noite. Certa feita o Cabo Lídio, delegado do lugar, depois de ter tomado alguns bons goles de pinga, passava pela Estação da Leste (empresa pública que administrava a rede ferroviária), meio às escuras pela falta de luz momentânea, quando percebeu um vulto de homem andando com um fardo muito grande na cabeça. O delegado, impressionado com a força do homem exclamou: Tarzan! Mas, pensando melhor, corrigiu: O cão! E disparou na direção da feira. Meu primo Lídio, depois viria saber que o super-homem que vira na naquela noite, era, nada mais nada menos, do que o Sargento Lima com sua carga de pipocas.

Durante a ditadura militar, instalada no Brasil em 1964, fora nomeado para ser o prefeito de Camaçari, de quem éramos distrito, o oficial do Exército Humberto Garcia Ellery, que comandou o lugar por treze anos até a sua emancipação. A preocupação de Ellery voltou-se inteiramente para a sede, que viria também a abrigar o Polo Petroquímico de Camaçari e assim, Dias d’Ávila, além de ter as suas riquezas naturais colocadas em segundo plano, também teve que presenciar a uma verdadeira degradação ambiental com que vivemos até os dias de hoje. As indústrias que por aqui se instalavam destruíam tudo. Parecia que estávamos no meio de uma guerra, onde os invasores, vindos principalmente de São Paulo, passavam por cima de tudo que para nós era tão importante. Os tratores iniciaram por destruir nossos morros de argila caulinítica, nossas florestas de tabuleiros, nossos rios, nossa fauna, nossa flora. O Imbassaí foi o mais prejudicado, e hoje precisará de um tempo mínimo de doze anos e da força de nossa gente para ser revitalizado. O Polo, e a poluição que nos trouxe, expulsou todos os veranistas, reduziu a expectativa de vida do nosso povo, dizimou inteiramente a nossa fauna, além de parte significativa da nossa floresta, como anteriormente dito. Até o Pirulito, nosso lindo e preferido trem, foi-se embora de vez.

Na década de 80, o povo do lugar, revoltado com a situação de abandono porque passávamos começou a se organizar para se libertar do domínio de Camaçari. O abandono era tamanho que para se consertar uma bomba d’água que existia no bairro do Genaro, o povo tinha que se humilhar diante da administração da Sede, Camaçari.

O movimento emancipatório teve início com uma avalanche de reuniões nos bairros, onde se falava com o povo o que viria a ser emancipação, qual a sua importância para que o atual distrito se libertasse de Camaçari e passasse a ser governado pelo seu próprio povo. Em 1983 foi criado o Diretório Distrital do PMDB com a ajuda do Presidente do Partido em Camaçari, o médico Dr. Francisco Françu Gomes Assemani e de companheiros combativos como Luis Caetano, Luiza Maia, Dora, Margarida do PC do B, Hilário de Jesus Leal, Haroldo Lima, Luiz Nova, Lourival Companheiro e tantos outros democratas.

Por aqui tínhamos muita gente valente e combativa como Margarida da Padaria, D. Elza e Ingo, Manoel Cosme, Geraldo Cordeiro, Giovah Galvão, Zé dos Prazeres, João Gandu, Seu Zé Aragão, Rafael Trigo, Otávio e D. Marisete, Tavinho, Dó, Zezito, Samuca, Carliles, Sobrinho, Justino Maceió, Madalena e mais algumas centenas de apaixonados que arregaçaram as mangas e partiram para a luta.

A organização política no município, embora insipiente, foi decisiva para o êxito no plebiscito e a conquista da emancipação. O Prefeito Humberto Garcia Ellery, com o apoio de seus aliados em Dias d’Ávila fez de tudo para conter o movimento do povo, que decididamente venceu todos os traidores e emancipou o município. Infelizmente, mesmo depois de libertados fomos traídos por esses amigos de Ellery, que se juntaram ao governo do Estado e criaram uma farsa de associação, que ao final interferiu na demarcação dos nossos limites, o que um dia desses vamos ter que voltar à luta para reavê-los.

No dia da eleição do plebiscito o povo de Dias d’Ávila teve um desempenho que a todos nos orgulhou, menos aos amigos de Ellery que apostaram até o último momento pela nossa derrota. A Juíza Marielza Tourinho, que presidiu os trabalhos eleitorais, emocionou-se com a nossa luta e ao final da apuração que nos deu a vitória, permitiu que falássemos ao nosso povo ali concentrado, tendo por palanque a sua mesa de trabalho. Aos amigos de Ellery só restou nos prejudicar com a farsa da tal associação que transferiu quase todo o nosso território para Camaçari.

O município foi criado em 25 de fevereiro de 1985 e instalado em 01 de janeiro de 1986, tendo seu primeiro prefeito Airton Nunes que governou até 1988. De lá para cá tivemos à frente do Município: Ditinho, Cláudio Cajado, Américo Maia e Andréia Xavier. Depois de quase trinta anos o povo tem a sua segunda e significativa vitória, elegendo uma das lideranças do movimento emancipatório, Jussara Márcia.

Para homenagear nossos heróis, que se propuseram a dar suas próprias vidas na luta pela emancipação, queremos citar alguns nomes (dentre tantos outros) de pessoas simples, que tanto nos honra pelo que foram e pelo que fizeram pela nossa terra: Seu Félix da carroça, Lapinto da charrete, D. Valdelice, Nide, Zene, Barbosinha, Paulo Moura, D. Astéria, Seu Alípio (pai de Flora), Raimundo Tamburete, Raimundo Tabireza e D. Maria, Lucas Evangelista, Abinal Barbosa, Seu Costa da padaria, Seu Reinaldo Mendonça Nink (pai de Lula), Seu Gama (pai de Silvia e de Guilherme Gama), Dedê da farinha (pai de Dica), D. Marcelina (mãe de Pedro Cinzeiro, pai de Paulinho), Seu Gagliano, Samoel Costa (filho de Seu Daniel e dona Zefa), D. Tereza, D. Zulmira Caetana, Professora Miriam Lemos, Ditinho, Durval Santana, Professora Vanda, Laurindo, Seu Arthur e D. Vivi, Professora Idinha, José dos Prazeres, Val da Urbis, Pedro Miséria, Jessé Bonfim, D. Firmina, Crescenço, Sargento Lima, Joaquim de Jessé, a Vereadora Margarida, Dó e Madalena, Manoel da Mata, Seu Justo (pai de Antônio Abeleira), D. Margarida, Altair da Costa Lima, D. Vaninha, o delegado Lídio, João Lolota, Manoel Costa, Giovah Galvão, Ingo Von Sekus, João Touro, Meladinha barbeiro, Xexéu açogueiro, Zé do Bar, Edmundo Santos Dias, D. Leonor, D. Mariá e João Amâncio, Alcides (Tio), Lula, Geraldo Cordeiro, Edmundo Magalhães, Seu Bié, Simão do caminhão, Lourival, Valter, Pinho, Eziquiel, Louro, Bento guarda chaves, Pedro da lenha, Alberto da Coelba, Careca da Viazul, Ferrugem, Cheiroso, André do leite, etc., etc., e todos os outros filhos da terra que ajudaram a libertar nosso povo do descaso humilhante de Camaçari.

Nascidos e criados em contato direto com a natureza, aprendemos a admirar nosso lugar pela beleza das suas planícies, a doçura das suas mangabas, do coquinho catolé, da cambuba, do murici, pelo aroma gostoso do nosso alecrim. A notoriedade da nossa terra se deu em decorrência de possuirmos a água mais leve do Brasil, que, além disso, trazia em si o poder de cura para várias doenças.

Com uma história tão simples, tão rica e tão linda esse povo sofreu a angústia de conviver por certo tempo com o medo de que nossa memória, nossas crenças, nossos valores pudessem se perder no tempo, em função da prioridade mais recentemente dada ao arrojo do capital que por aqui se instalou, trazendo riqueza, mas, associada a ela poluição e insegurança.

Felizmente, novos ventos sopram e tem-se observado a existência de um movimento revitalizador, que parte predominantemente da juventude estudantil, mas que conta com apoio de grande parte da comunidade, principalmente da totalidade dos filhos da terra e dos que aqui chegaram e por nós foram recebidos como se dela filhos fossem.

Dias d’Ávila é hoje sinônimo de esperança e de grande alegria.

Justino Francisco dos Santos

Escritos. Em 26.06.2013

Justino Francisco
Enviado por Justino Francisco em 29/06/2013
Reeditado em 29/06/2013
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