Possibilidades

POSSIBILIDADES

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 26.06.13)

Caminha ao longo da avenida ensolarada, após as chuvas e ventos fortes, seguindo pelo passeio que tantos usam todo dia para também caminhar, correr, andar de bicicleta ou de "skate", de patins ou de patinetes. Desfila, enfim, por um local público amplamente utilizado pela população. Veste roupas de atleta, dessas que traja a gente que sai todo dia para exercitar-se numa caminhada vigorosa de uma hora de duração. Prazer, recomendação médica, necessidade, exibicionismo, hábito ou vício. Talvez um pouco de cada coisa. Caminha com a expressão tranquila e segura. Com uma expressão equilibrada, normal.

Foi vista por um bocado de gente, como vê e se deixa ver cada pessoa que transita por ali ou por qualquer outro lugar, por mais distante e menor que seja. Foi fotografada e até filmada como somos todos nós filmados e fotografados a cada instante, em todos os lugares. Já nem ligava mais para a bisbilhotice universal. Com a tecnologia disponível, não há pouca luz que iniba esse vasculhar detalhado. Ninguém se espante se já existirem no mercado equipamentos digitais que detectem numa pessoa que passa o pum discreto e silencioso que ela tenha soltado, desses que saem sem que se precise mudar o passo ou alterar, por mínimo que seja, o espaço entre as pernas, desses absolutamente imperceptíveis a não ser pela eventual fragrância de que se façam acompanhar. Uma máquina dessas registrará o fenômeno e medirá pressão de escapamento, volume, cor, alcance da emanação, sua direção e grau de umidade. No futuro próximo, modelos mais avançados farão a análise dos gases que o compõem e dirão, com margem de erro inferior a 2%, o tipo preciso de cada alimento ingerido, suas quantidades, calorias e teores de sódio, açúcar e colesterol. Fácil assim, apenas focalizando a pessoa que passa à nossa frente.

Mas o que chama a atenção é o guarda-chuva que ela carrega na mão, um guarda-chuva de bolinhas brancas de diversos tamanhinhos. Nesta quadra de manifestações generalizadas pela qual passa a nação, sua atitude é vista como uma forma original de protesto, como se portasse um cartaz ou uma faixa, cada bolinha representando a cabeça de um adulto ou criança agrupado numa multidão de manifestantes. O guarda-chuva completamente desasado e estropiado seria nada menos do que um retrato do Brasil esfacelado pela corrupção e pelo descaso dos políticos com o bem geral. Ela foi aplaudida por alguns passantes que assim interpretaram o seu adereço.

Mas logo estabeleceu-se uma renhida discussão a respeito da quantidade de guarda-chuvas que ela carregava, pois testemunhas juravam que eram dois, esse de bolinhas brancas e outro banal, todo preto e de panos arriados, quase inteiramente despregados da estrutura de metal como uma bandeira esfarrapada. Para dirimir a questão, buscou-se a verdade nas filmagens das lojas e edifícios pelos quais ela passou, bem como nos registros feitos pelas pessoas comuns, conseguindo-se, sem dificuldade, recompor 80% do seu trajeto: de fato, ela apanhou aquele primeiro guarda-chuva revirado que alguém espetara junto a uma lixeira do caminho, mais adiante recolheu o segundo e entrou em casa com cinco deles pendurados em mãos e braços. A dúvida nascente é se ela ou alguém se valeria do tecido para algum fim desconhecido ou se o objetivo da coleta seriam os metais.

Em vista desta possibilidade, um filósofo que observara a cena sintetizou o dilema: será que ela (ou alguém) se dedica a desossar ou a descarnar guarda-chuvas?

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Amilcar Neves, envolvido com a criação de uma nova novela, é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com. Textos avulsos do autor podem ser lidos em http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=34029.

"Somente teremos discussões salutares neste País se respeitarmos a História."

Eu Mesmo, em 17.04.13, respondendo a "e-mail" sobre golpe de 1964 e ditadura de 21 anos.