EU ... EXISTO! ! !
Você, ao nascer, já recebe um número na pulseirinha. Pelo menos era assim no tempo em que lembro de bebês em hospitais. Aí então vem a certidão de nascimento, com um novo número cheio de algarismos. Toda sua história será marcada por esses sinais . Você provavelmente não sabe todos de cor. Há pessoas que decoram os mais importantes : RG, CPF, Conta Bancária. . . Você, gostando ou não, é um zero vírgula zero, zero ,zero e alguma coisa muitos zeros depois, nos cálculos estatísticos.
Quando se aproximam os feriadões, lá vêm os noticiários falando de que no ano anterior morreram vinte ou trinta nas estradas, tantos carros bateram, tudo isso só pra avisar que neste que se aproxima a polícia rodoviária estará tomando tais precauções, que os motoristas devem fazer aquilo que todos sabem , mas muitos não cumprem e, de certa forma, anunciando o próximo espetáculo macabro das estradas. Sem falar nos rotineiros assaltos e sequestros. Tudo que a fria estatístca pode prever baseada em dados que manipula como mágica e que são bastante precisos, veja-se o caso das pesquisas de opinião.
Além de tomar os cuidados necessários, você só pode rezar para que sua vez de engrossar as fileiras de tal senhora não chegue tão cedo. No mais é seguir em frente e ficar frio.
Já nascemos predestinados pela herança genética, pela condição social de nossos pais e, a partir daí, podemos ser enquadrados em tabelas e mais tabelas, de cálculo da nossa situação em relação a uma possível obesidade, dos parâmetros da psicologia onde estaremos catalogados como tipos específicos quanto ao nosso perfil psicológico e agora, com os avanços da engenharia genética, as criaturas humanas, de certa forma, vão poder dar uma rasteira na Dona Natureza, pela manipulação dos nossos cromossomas com objetivos pretensamente positivos.
Mas, conhecendo a racinha que nosso amado Deus plantou, confesso que estou um tanto pé atrás com tudo isso. Falando em Deus, o pobre virou artigo de marketing religioso. O grande mercado da fé , de tanto abusar e usar seu santo nome, está começando a criar um tal desgaste no Divino Criador que minha vizinha ontem, ao saber que a UNIVERSAL comprou a TV GUAÍBA, o último reduto dos gaúchos onde a gente podia "ouvir" um pouco o gauchês, gritou desesperada:
- Assim não dá mais, eu to ficando com raiva de Deus!! Comprar a nossa TV Guaíba!!!
Sinal dos tempos, ou será desgaste mesmo? E onde andará aquele Deus da minha infância, distante, superior, discreto? Vai ver cedeu seus direitos a uma multinacional...Se bobear, foi mesmo pras profundas do infinito deixando aqui um clone diabólico.
Como eu dizia, estamos mais enquadrados que aquarela pequena naquelas molduras avantajadas. Aí moramos num local numerado, nosso espaço foi medido e calculado milimétricamente pelo engenheiro, nossos pés de bicho com sapatos, ou tênis, ou chinelos devidamente numerados, muito cimento por baixo , por cima e pelos lados, resultado de montanhas de cálculos de engenharia e arquitetura . E lá de dentro o pobre do bicho gritando por liberdade, por espaço, por movimento.
Há os que conseguem gastar 15 milhões na compra de uma jaula de luxo, com três andares de solidão. Casas inteligentes, além de todo o conforto estéril. Você, lá de longe, programa sua casa como a quer encontrar: quais luzes estarão acesas, a água na banheira, na altura e temperatura desejadas, o ar condicionado no ponto, elevadores internos para não subir escadas. As portas que se abrem mediante senhas farão o cidadão adentrar ao seu lar apertando botões, passando cartões magnéticos, tudo em conformidade com o que melhor existe no mundo de hoje. Mas não há tecnologia capaz de substituir o gosto de ouvir a água caindo na banheira ou do chuveiro, após girarmos as torneiras quente e fria procurando a melhor temperatura. Nada melhor do que usar um pouco as mãos em texturas diversas, interruptores, trincos, botões de aparelhos.
E aquelas medidas aproximadas, mas bem mais poéticas, como os PALMOS de fundura das sepulturas, as LÉGUAS DE BEIÇO,uma forma divertida de dizer que o gauchão, ao dar uma informação, ESPICHAVA os lábios pra frente e levantava o queixo em uma direção dizendo: É LÃÃÃÃN ! E também poderíamos dar DOIS PASSOS ou TRÊS, colher uma PENCA de frutas, uma BRAÇADA de flores, semear um PUNHADO de grãos, trazer uma FIEIRA de peixes e enfim, dar DOIS DEDOS de prosa...
Entretanto, você não existe sem os números que o identificam. O único resquício humano nos documentos são as fotos e o polegar direito carimbado na sua RG. Certa vez, estando a recenseadora em nossa casa, meu filho então com onze anos correu atrás dela julgando que não teria sido incluído na contagem. Achamos muita graça, mas por essas coisas pode-se avaliar que a questão não é simples . Ele era um menino que levava tudo muito a sério e não constar nos números do Censo parecia-lhe algo ameaçador e perigoso, como o de sentir-se destituído de existência real. E, mesmo não sendo o caso, ele estava com a razão. Não se pode andar sem uma identificação por aí. Como diz o comercial, sem o registro de nascimento, "você não existe". Assim, poderíamos partir para uma divagação filosófica sobre a nossa real presença no universo e criaríamos a seguinte variação para a frase de Hamlet:
EXISTIR, OU NÃO EXISTIR, EIS A CERTIDÃO !!!