Capítulo 09
Mais uma noite que vai ser longa, pensou Marco enquanto o policial lhe passava as informações sobre o cadáver encontrado no meio da rua. Caio tinha ficado em casa o dia todo e não atendia telefonemas. Marco fora chamado para investigar mais um caso de assassinato em sua regional.
Um militar chamado Paulo Lopes, cabo do exército, encontrado por um casal de namorados que quase atropelou o cadáver que se encontrava no meio da rua. Sâmia tinha lhe ligado e designado para o local do crime. A semana tinha começado bem agitada, começando pela morte do soldado Oscar Santos no início dela, fazendo com que Marco, contra sua vontade cogitasse a possibilidade de arquivar o caso.
- Nem pensar – disse ele á si mesmo quando lembrou da autópsia. Esse caso seria resolvido, não havia motivos claros que explicassem a morte do soldado e não havia motivos claros para que Marco abandonasse o caso. Ele havia ido á casa do soldado, mas ele não tinha família, bateu na porta e fora informado pelos vizinhos que o homem vivia sozinho a não ser quando trazia prostitutas, belas e caras prostitutas.
A casa do homem era de um tamanho considerável, o Corolla na garagem indicava que o soldado herdara uma bela fortuna ou ganhava um extra além do salário de soldado. “Muito rico prum soldado” disse o vizinho Marco não precisava do comentário para entender isso. Os rapazes no quartel sempre o acharam muito esnobe, mas ninguém sabia de seu passado e nem de sua situação financeira. Ninguém se importou também de saber que o companheiro fora assassinado. “Eu não vou arquivar isso” pensou Marco novamente. Tudo o que ele ouvia há cinco minutos criava novas esperanças de não precisar.
O corpo do cabo Paulo Lopes foi encontrado no meio da rua, á cinqüenta metros da entrada de sua casa, que tinha um muro alto, de cerca de três metros. Era um muro de pedras grandes e cinzentas, muito bonito, mas que não possuía nenhum tipo de segurança como pega-ladrão ou cerca eletrificada, era simplesmente um belo muro de pedras.
O cabo tinha um furo na nuca e um buraco do tamanho de um punho na testa, por onde a bala saíra.
- Rifle de precisão - disse o perito á Marco - ele foi atingido bem na testa, morreu na hora.
O telefone de Marco tocou.
- Pode dizer.
Era a delegada Sâmia, ela dizia coisas que faziam Marco começar a ficar tonto. Segundo ela, mais dois militares do exército foram mortos nas últimas duas noites, depois de Oscar Santos, em duas regionais diferentes. Mais dois militares receberiam a salva de tiros em luto. “Que diabos ta acontecendo?” perguntava Marco a si mesmo. Sentia um leve enjôo tomar conta de sua barriga. “Por que alguém estaria matando militares a torto e a direito?” Ele pediu que Sâmia localizasse o legista e informasse-o que Marco o procurava.
A mulher de Paulo Lopes era morena e bonita, tinha cara de ser aquele tipo que foi encontrada num pagode ou forró da vida: bunda muito grande, quase nenhuma cabeça e um shortinho de um palmo de largura. “Droga” pensava Marco, ele tinha a mania de rotular as pessoas e precisava parar com isso, vivia dizendo Caio. “Nem toda mulher que tem uma bunda grande é uma vagabunda” era o discurso que o parceiro usava. Marco pensou no amigo, era a primeira vez que ele tomava a frente em uma investigação e estava meio perdido sobre o que fazer. “Bom, vamos ver o que essa bunduda tem pra me dizer”, pensou e se recriminou de novo por seu preconceito.
A mulher disse que tudo começou quando o filho dela foi ao seu quarto perguntar se já podia ir beber água, porque um caça-fantasma tinha-o mandado voltar pro quarto e contar até cem.
Isso era quase tudo que a mulher tinha pra dizer, ela estava mais abalada pelo fato de seu marido ter sido encontrado morto no meio da rua, do que propriamente por ter perdido o marido. A multidão estava cada vez maior e já passava da meia-noite. Repórteres haviam chegado e filmavam tudo por trás da faixa amarela.
- Detetive – chamou um policial – você precisa ouvir isso. Marco foi até o policial e esse lhe apresentou uma garota. Parecia ter uns vinte anos, tinha sardas, pele bem branca e usava calças jeans e uma bota de salto, o cabelo estava solto atrás e era de um castanho quase acinzentado pela noite. Ela não vinha com câmeras e nem microfones, mas se apresentou como repórter, tinha apenas um gravador que mostrou a Marco.
O nome dela era Fernanda, era estagiária de jornalismo de uma faculdade próxima, disse que precisava falar com o detetive responsável.
- Podemos tomar um café detetive? – perguntou ela assim que ele parou á sua frente.
“jornalista” pensou.
- Nós não falaremos sobre a investigação. – disse Marco, virando-se para voltar á Paulo Lopes.
- O senhor serve, detetive Marco – disse ela. Marco se virou para a garota.
- Quem te disse meu nome? – perguntou.
- Ele. – falou ela – o cara que anda fazendo isso.
Marco e a Fernanda foram á um café 24 horas que ficava próximo á cena do crime, foram numa parati da polícia civil que ele estava usando enquanto Caio não voltava ás investigações. Decidira juntamente com Sâmia de que ele poderia tirar um recesso e Marco batia o cartão para ele enquanto a delegada fazia vista grossa.
Pediram dois cafés, a noite começara a esfriar e ameaçava chover. Marco e quase não falou no carro, mas Fernanda não parava de falar, falou mais nos últimos cinco minutos do que Marco achasse que alguém tivesse capacidade para falar. “Se não fosse tão bonita eu mandava calar a boca” pensava ele.
Fernanda aparentava ser uma garota inteligente, e como descobriu Marco nos últimos minutos de conversa, ela realmente era! Doida também, mas inteligente. Ela estava no oitavo semestre da faculdade de jornalismo, no quinto semestre tinha comprado uma passagem para o Kuwait e iria estagiar gratuitamente no Iraque, cobrindo a guerra junto com um renomado jornalista, mas os pais descobriram seu passaporte e suas passagens e rasgaram na mesma hora.
- Iraque? De graça? – riu Marco – Você é louca garota!
- Por que? – perguntou ela como se fosse a coisa mais normal do mundo - alguém precisa cobrir o massacre que os ianques estão fazendo lá! Não é justo! Além do que, não estou indo pra África, onde as tribos locais matam até os médicos! Eu estava indo para o Iraque, ficar junto com as pessoas da Cruz Vermelha e um monte de militares defendendo a gente. Nada ia acontecer.
Ele riu de novo, realmente tinha doido pra tudo messe mundo. O café chegou, a senhora que os servia tinha um ar muito disposto para uma moça de idade que trabalhava até a meia noite, Marco sorriu para ela e agradeceu-a, Fernanda fez o mesmo.
- Ta certo – começou ele - que tal você me contar tudo o que você sabe?
- Ainda não detetive – disse ela enquanto provava o café que não estava tão quente.
- E quando você vai começar?
- Antes quero que você prometa uma coisa – disse ela tirando o gravador do bolso e colocando sobre a mesa – eu quero ser a única repórter a cobrir esses assassinatos.
- Eu te disse que não falaria sobre as investigações – disse Marco começando a se irritar com a audácia da garota.
- Eu entendo detetive. Não pense que não quero que mais três pessoas sejam mortas, mas...
- Como: mais três pessoas?
- Como eu ia dizendo – continuou dando um certo charme no sorriso ao falar – quando tudo isso acabar, eu quero exclusividade nessa reportagem.
Marco pensou por um momento, olhou fundo nos olhos de Fernanda procurando uma fraqueza, uma chama de mentira nos olhos dela, mas falhou. Essa garota realmente saberia de alguma coisa, ou era tudo blefe? Precisava falar com Caio.
- Pensa bem detetive – disse ela, adivinhando seus pensamentos – se minhas informações não forem úteis, você não dará a minha entrevista.
Marco pensou por mais um momento. Ela tinha razão. Ele assentiu para ela, fez um sim com a cabeça e começaram uma longa conversa.
Fernanda dormia com uma camisola do ursinho Pooh e não usava calcinha, a cama tinha um cobertor do Bisonho e seu quarto era repleto de ursinhos de pelúcia que velavam seu sono, no tapete dormia o seu filhote de Beagle. O dia fora cansativo para a garota que passava as noites escrevendo sua monografia e os dias na faculdade pesquisando. O ruim era que não estava conseguindo se interessar pelo que escrevia: O massacre do McDonald’s. Sobre os efeitos que a empresa de fast-food causava sobre empresas nacionais de alimentação. Aquilo não era pra ela, ela queria estar no Iraque cobrindo a guerra, ou no Afeganistão, mas não iria escrever sobre lugares em que nunca esteve. Sobrou o McDonald’s, que ela crescera dentro e durante a faculdade passara a odiar.
O telefone tocou pela quinta vez.
- Alô – disse Fernanda quando atendeu ao telefone de seu quarto.
- Fernanda? – disse uma voz bonita, voz de homem.
- É ela – falou sonolenta – está tarde, quem é?
- Ouça bem e anote tudo que eu vou lhe dizer – disse a voz – pode ser a grande oportunidade de sua vida.
Ela acordou num instante, sentou-se na cama e ajeitou os cabelos, tinha aprendido á sempre ter caneta e papel á mão. Em todo o quarto, em toda a casa e perto dos telefones ela colocou um lápis e um mini-bloco como aqueles de lembrete que se prega na geladeira.
- Pode falar.
Silêncio.
Então ele falou.
- Eu acabei de matar mais uma pessoa.
Ela gelou. Acendeu a luz e olhou ao redor do quarto, como se procurasse o bicho papão ou algum idiota fazendo uma pegadinha com ela. Tudo estava como ela havia deixado, os ursinhos continuavam olhando para ela.
- Isso é algum tipo de palhaçada?
- Eu vou honrar mais três pessoas. Você deve procurar o detetive Caio ou o detetive Marco do DEPHO central. Diga á eles que quando meu serviço estiver completo eu me entregarei, mas que até lá, eles não têm a menor chance e se tentarem me impedir... gente que não precisa se machucar vai acabar se machucando.
Ele desligou.
Ela continuava gelada, tudo isso parecia um pesadelo e ao mesmo tempo um sonho, era a grande oportunidade da sua vida. Uma estagiária cobriria essa história, poderia conseguir um mestrado aonde quisesse e talvez nem precisasse de mestrado para conseguir um emprego em alguma emissora de televisão de ponta. Ela estava excitada e por um momento sentiu vergonha de si mesma: excitar-se enquanto sabia que mais três pessoas morreriam.
“Não” pensou “eu vou tentar salvar essas pessoas e depois escrever minha estória”
- E aqui estamos nós, detetive – disse ela abrindo os braços – isso é tudo que ele me disse.
Marco pensava enquanto ouvia a estória e nada estava fazendo sentido.
- Por que ele te procurou? – perguntou finalmente – não tem muita lógica.
- Acho que ele quer que a obra dele seja contada.
- Tá, tudo bem, mas porque ir atrás de uma garota que nem se formou, que não têm experiência nenhuma?
- Opa, calma lá, quem disse que eu não tenho experiência nenhuma?
Marco encarou a garota que agora sorria enquanto começava a falar que nem uma matraca, e ela começou contando o trabalho de reportagem que ela fez sobre a morte de militares nos treinamentos do CIGS, em 2005.
- Selva companheiro? – perguntou Marco, quase num pulo – você disse Selva companheiro?
Fernanda estava explicando tudo sobre seu trabalho quando esteve na Amazônia, desde a vacina contra malária até os árduos treinamentos que ela nem em sonho cogitaria em participar. Explicou sobre o patriotismo e sobre o cumprimento dos militares entre si.
- É – confirmou ela – no CIGS eles não falam “oi, tudo bem?” Eles falam “Selva companheiro!” ou “Brasil” são um bando de fanáticos, mas graças a eles, nossas fronteiras estão seguras contra invasões estrangeiras, ninguém compete com nossas forças de guerra na selva, somos os melhores do mundo. Quando estava lá, veio um americano do SEALS e não conseguiu terminar o curso, levava tanta picada de mosquito que foi inventar de usar um lençol pra se cobrir, e o lençol ainda era branco. – ela terminou dando uma risada simpática que mostraram a Marco os dentes brancos e perfeitos da garota – segundo eles: “a selva não gosta de quem se mostra”.
Marco estava pensativo.
-Por que você se assustou quando eu disse aquilo?
Então ele explicou á ela sobre o interrogatório do mendigo que presenciara o assassinato de Oscar Santos, o soldado que levara duas facadas mortais, de uma arma tão potente, que segundo o legista poderia furar a lataria de um carro. Quem quer que fosse esse homem Marco já tinha uma noção: era alguém bem treinado, que sabia o que fazia: matar!
O telefone de Marco tocou e ele atendeu. Era o legista e os temores do policial tornaram-se verdade: um dos militares que fora morto em outra regional continha ósmio nas marcas de faca, que atravessavam a coluna e o pulmão, fora pego desprevenido por trás e recebera duas facadas que o mataram na hora. O outro não dava para saber, tivera o pescoço quebrado para trás: a autópsia sugeria que alguém o jogou no chão, sentou-se em suas costas e quebrou seu pescoço puxando-o para trás. “Bem bizarro” disse o legista ao terminar de narrar a cena.
Marco foi até a delegacia da DEPHO central. Era um prédio grande, de três andares e muita gente trabalhava nesse horário de madrugada. Para o pessoal da homicídios: a cidade está realmente acordada á noite! Era a noite que a DEPHO estava com o maior contingente do seu pessoal, indo atrás de assassinos, seriais e de suas pistas. Era a noite também que aconteciam os homicídios, e hoje não era diferente, a delegacia estava bem movimentada.
No prédio havia uma sala no setor norte que era a sala de interrogatório. A esposa e o filho de cinco anos de Paulo Lopes estavam dormindo em um sofá preto que lhes fora oferecido, era duro e tinha pedaços de couro rasgado que soltavam e espetavam, mas de alguma forma, a criança e a mulher conseguiam dormir.
Sâmia conseguiu se comunicar com Caio e ele avisara que estava voltando ao trabalho, ela pediu que ele repensasse e tirasse uma semana de recesso, mas ele recusara.
Marco e Caio se encontraram no corredor da delegacia. Caio estava com uma aparência cansada, a barba por fazer, a camisa amarrotada e parecia que ele tinha dormido com a calça, pois essa estava um bagaço. Marco notou: o parceiro esquecera a gravata. Resolveu não comentar nada, ao invés disso foi direto ao ponto.
- Cara! – começou ele enquanto andavam lado a lado pelo corredor – o negócio é o seguinte.
Marco contou tudo o que acontecera nas horas de ausência de Caio e ele ouviu com atenção, desvencilhando-se de qualquer pensamento sobre a esposa que estava hospitalizada.
- Então – continuou Marco – vamos interrogar o garoto, que viu o nosso assassino e vamos tentar fazer um retrato falado dele. Colocaremos nos jornais a foto do filho-da-puta e o cara não vai poder sair de casa.
Os dois entraram pelo corredor e encontraram a mãe e o filho de Paulo Lopes dormindo no sofá, Caio acordou-os gentilmente.
- Desculpe o atraso – disse ele sorrindo – podemos conversar com seu filho?
A sala de interrogatório tinha um vidro espelhado que só permitia a visão das pessoas que estavam do lado de fora, uma mesa de metal soldada ao chão e paredes cinza escuro, a luz branca vinha de uma luminária que descia do teto até quase bater na cabeça dos que estavam na mesa. Toda vez que Marco se levantava da mesa batia a cabeça na luminária. “Um dia vou quebrar essa merda!” dizia ele enquanto coçava a cabeça. A delegacia central do DEPHO era a única no Brasil que possuía uma sala dessas.
O DEPHO fora criado pelo governo para resolver os homicídios mais complexos e a prova para entrar era muito difícil e concorrida. Consistia em dez questões escritas que eliminavam a maioria dos concorrentes porque no começo dela vinha escrito: “leia a prova antes de responde-la” e boa parte respondia tudo enquanto liam as questões. Quando chegavam ao fim da prova, em letras garrafais encontravam um: NÃO RESPONDA NADA E ENTREGUE A PROVA DO JEITO QUE VOCÊ A RECEBEU! Isso era suficiente para eliminar a maioria que não tinha uma boa capacidade perceptiva. Os que sobravam recebiam uma prova descritiva sobre português, química, biologia, física e matemática. A prova definitiva era uma redação corrigida por psicólogos que identificavam o tipo da pessoa que escreveu a redação. Só entravam pessoas que tinham vontade de ajudar as pessoas, o país e o mundo. O salário era bom aproximadamente três mil reais para delegados e mil e oitocentos para investigadores.
Marco e Caio encontravam-se na sala, sentados frente a frente do garoto. Ele parecia contente apesar da respiração pausada, segundo a mãe, ele não sabia do assassinato do pai. Ele tinha um palhaço de pelúcia preto embaixo do braço direito, uma jarra e um copo d’água á sua frente. Os olhos verdes e o cabelo encaracolado e loiro formavam cachos que nem os de um anjo. Era um garoto que não parecia ser filho do casal: Paulo era mulato e Rita tinha cabelo preto e uma pele cor de bronze. Era um garoto adorável e parecia ser inteligente.
- Tudo bem? – começou o detetive Caio.
- Tudo – respondeu o garoto.
- Qual o seu nome? – Marco, sem querer, fora um pouco mais agressivo. O garoto esbugalhou os olhos para o detetive. Caio o recriminou com um olhar.
- Nós não vamos fazer o papel de detetive bonzinho e malvado para ele. É só uma criança. – disse Caio entre os dentes.
- Luquinhas – respondeu o garoto abraçando o palhaço.
- Tá Luquinhas – disse Caio amigavelmente – eu sou o tio Caio e esse é o tio Marco, nós queremos ajudar a sua mamãe á encontrar seu papai. Somos seus amigos. Que tal um pirulito?
O garoto aceitou o pirulito que Caio tirou do bolso. O detetive pretendia chupa-lo, fora presente de sua filha, mas ele achou que o garoto apreciaria mais. Luquinhas abriu o papel ávido por enfiar o pirulito na boca e Marco o ajudou.
- Bom Luquinhas – disse Caio – posso te chamar de Lucas?
Lucas sorriu para Caio.
- An-han – confirmou com a cabeça
- Tá bem Lucas, porque não me conta o que você viu?