PELO "FOGO DE CHÃO" DO MEU IDO SÃO JOÃO

Tempos remotos, era uma daquelas aquecidas noites frias de São João, naquela época em que São Paulo ainda era terra da névoa de garoa e a noite era de se pular a fogueira.

Lembro-me que minha mãe sempre me orientava: "não venha tarde, menina, porque hoje é a noite mais fria e mais comprida do inverno...não esqueça o cachecol, não fique perto do fogo e não exagere no quentão porque pode dar dor de barriga"

A esperada festa anual era no quintal vasto da vizinha mineira, um terreno de terra batida que parecia o paraíso das crianças.

Eu morava numa rua de bairro simples e fazia parte daquela toda meninada que " de dia" ali soltava pipa, jogava bolinha de gude nas calçadas, descia o asfalto da pirambeira de carrinho de rolimã e corria nas enxurradas do meio fio quando a chuva de verão descia torrencialmente. Vivia com os joelhos ralados e nunca senti dor alguma por aquilo.

Felicidade naquela minha época tinha endereço simples e enredo contagiantemente rico...e só parava quando minha mãe gritava da janela:"menina, saia já do meio dos meninos e vem tomar banho".

Emburrada e resmungante...eu a obedecia.

Amália era o seu nome. Aquela vizinha que todos adorávamos porque era uma anfitriã das festas juninas. Nunca conheci fogueira maior que aquela que todos nós, crianças da rua toda , durante o dia ajudávamos a construir. Dava-nos um trabalhão!

Então, íamos para aos arredores dos terrenos baldios a buscar gravetos enormes que os meninos os arranjavam artesanalmente como se fosse uma árvore de natal para comemorar o São João.

Eu, que nunca alcançei o cume da fogueira, enquanto colocava os gravetos só na base dela, aprendendo tão precocemente que para se ser feliz não precisamos necessariamente galgar nenhuma altura, me perguntava porque aquela belezura toda, tão alta, pegaria fogo...logo mais. Pensamentos bobos de crianças...

Tão logo às seis da tarde, a meninada já descia a rua toda arrumadinha a caráter, como se fosse numa dessas passeatas de hoje, em direção à casa da dona Amália, a quituteira mais perfeita , da fogueira mais linda que conheci na vida. Naquele tempo nossas reivindicações eram simples.

Eu caprichava na minha roupa, feita pela minha mãe. Amarrava as Maria Chiquinhas...com laços vermelhos.

Saibam que o quentão da dona Amália perfumava a rua toda.

O milho verde, o cuscuz de farinha amarela, a pipoca doce crocante, o pé de moleque, a paçoquinha feita no tacho, o "ponchee' de frutas ....o sanduíche de salsicha e de carne maluca, com molho de tomates frescos, os balõezinhos de papel de seda que se apagavam no vento sem riscos às matas, as bandeirinhas coloridas e a fogueira de fogo alto que partia do chão rumo às de estrelas graúdas do céu duma infância, tudo ficou perenemente aceso dentro de mim.

Todas as noites de São João, como essa que hoje estamos , olho para céu e vejo a mesma garoa descer no horizonte dum tempo, sobre a fogueira que se acende bem alto no cerne do meu peito de festa , sob as bençãos do mesmo São João de sempre.

Ouço também, bem ao longe, a gargalhada distante daquela criançada, momento em que, no sereno dum vento frio que desce pela memória , eu me aqueço e também sonorizo a canção que em mim nunca se calou:

"Chegou a hora da fogueira...é noite de São João...".