MEMÓRIAS DE UM BÊBADO

Naquela noite me entorpeci de solidão e de vinho. Como podia um mundo tão grande me encurralar? Não sei. Mas me sentia assim.
Sai de casa pra fumar um cigarro, mas no fundo não era pra fumar, era pra sair de casa. Acreditei que poderia encontrar alguém com quem pudesse conversar, alguém que pudesse me compreender. Mas quem? Mendigos que como eu são miseráveis, velhinhas que igual a mim são sozinhas, pois viram todas as pessoas que amavam morrerem ou as abandonarem, ou até mesmo cães vira-latas, que rastejam entre sacos de lixo pra acharem o que comer e que se humilham por um mínimo gesto de carinho, muitas vezes configurado num simples cafuné. Não encontrei nenhum desses tipos naquela noite, (muito melhor), encontrei uma bela moça que caminhava sozinha pelas ruas escuras. Ruiva, levemente manchada de sardas, olhos de mel e uma boca carnuda realçada com batom vermelho caminhava pelas ruas escuras como se fosse a lua, que ilumina de noite pra lhe notarem melhor.

- Boa noite. Disse, no vazio.
- Boa noite. Retrucou, com um tom assustado.
- Desculpe te incomodar, mas sai de casa porque estava me sentindo encurralado e imaginei que pudesse encontrar alguém para conversar. Pensei em mendigos, velhinhas ou cãezinhos vira-latas, mas eles não apareceram hoje e só encontrei você.

Ela sorriu. Não sei como aquilo aconteceu, mas o tempo multiplicou por dez e aquilo que durou apenas cinco segundos, para mim durou quase um minuto. Essa sensação se repetiu algumas vezes ao longo que nos conhecíamos. Aquela noite nunca acabou por que não fomos dormir. Ficamos perambulando pelo centro de São Paulo a madrugada toda. Falávamos sobre tudo, ciência, política, filosofia. Tudo que falávamos tinha uma deslumbrante concordância. Como uma música clássica. Como as Bachianas de Villa-Lobos.

Quando amanheceu a beijei no Anhangabaú bem em frente a estátua de Camões. Emocionado recitei seus versos:

- Amor é o fogo que arde sem se ver!

E misturei a versos de improviso.

- Amor é a chave da alma
Que a liberta da ínfima vida
Para a vasta eternidade.

Nadine atravessou a rua correndo para me provocar, sob uma densa chuva vi seu rosto molhar-se como uma ilha e seus olhos pareciam dois lagos um do lado do outro, tanto era que se os observasse com mais cuidado conseguia enxergar neles, cisnes boiando, gaivotas em volta a procura de peixes e até o reflexo do sol. Quando num estalar de dedos, como se existisse num mesmo momento duas cronometragens de tempo diferentes; um em câmera lenta, onde a via correr sob a chuva e sorrir com seu belo par de olhos vidrados em mim e outro em alta velocidade, onde vi um carro atropelá-la em cheio.

Aquela noite de fato nunca acabou. Todos os dias enquanto bebo uma ou duas garrafas de vinho e fumo meu cigarro sentado no batente da minha janela, ( pois nunca mais senti vontade de fumá-lo na rua), adormeço ali mesmo, lembrando-me daquela noite. E confesso que antes de dormir desejo que "sem querer" eu caia da janela. Pois pra mim seria a única forma de ser livre de novo desse mundo e me juntar a ela.

Guilherme Sodré
Enviado por Guilherme Sodré em 22/06/2013
Reeditado em 22/06/2013
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