Sobre Leitores
Tempos atrás quando eu era estagiário e minha bolsa pouco me permitia, cacei pelo centro do Rio de Janeiro as melhores e mais econômicas formas de alimentação. Acabei encontrando duas lanchonetes que me satisfizeram os olhos, o estômago e o bolso. Uma ficava na Travessa do Ouvidor, lugar que hoje chamaríamos de “retrô”, mas na verdade só mantinha suas características originais desde a inauguração. Lanchonete charmosa, com pisos antigos e os famosos copos descartáveis de papel em formato de cone. O hambúrguer no pão sírio e a laranjada me são inconfundíveis até hoje. A outra lanchonete, mais moderninha, situava-se (essa não existe mais) na Rodrigo Silva e tinha o segundo melhor joelho do Rio. Era a famosa pastelaria chinesa de donos coreanos.
Forrado o estômago e com tempo de sobra, eu precisava encontrar outra atividade tão interessante quanto à primeira. Descobri uma livraria, do tipo gigante (cabia o mundo todo e ainda sobrava espaço).Virou meu mundo, meu oásis. No começo eu me sentia um estranho no ninho, não por conta dos livros, habitué que era, mas faltava o costume dessa vida de leitor de livraria grande, que podia sentar e devorar um livro inteiro sem aporrinhação. No meu bairro os donos de bancas só faltavam usar a palmatória em quem folheasse os jornais ou abrisse as revistas. Mal conseguia um cumprimento. Existiam ainda as bibliotecas da escola e do bairro, que serviam de base para as pesquisas escolares e de repositório de sonhos, com suas mil e uma noites de histórias e fantasias. Só não era a mesma coisa, era uma relação rápida de empréstimos e devoluções. O ambiente não era o mesmo – psiu psiu toda hora em busca de silêncio.
Meus intervalos ganharam magia (de estagiário, tornava patrão): sentava-me em poltronas confortáveis, (no início do mês) pedia um cappuccino e lia, lia... Degustava as crônicas do Sabino, aprendia sobre deuses da Mitologia Grega, descobria Brás Cubas, ouvia os minutos iniciais das músicas preferidas e tudo o mais que eu pudesse fazer em pouco mais de quarenta minutos. As cerejas do bolo eram as tardes de autógrafos com mocinhas das revistas masculinas. Nesses dias eu nem lanchava, já ia direto enfrentar aquela saga lancinante e ver minhas ninfas ao vivo sem nenhuma timidez.
Dia desses conversando com uma amiga descobri que ela faz parecido como eu fazia; mantendo um sentido subversivo da coisa, lê timidamente um capítulo por semana, temendo ser descoberta a qualquer instante e condenada ao exílio (da livraria, claro). Divirto-me pensando na possibilidade, mesmo sabendo que tal coisa não aconteceria. Seus casos ajudaram-me a relembrar meu passado e o medo que carregava grudado em mim: ser pego em flagrante lendo Poirot e ficar sem a solução de mais um de seus casos.
Hoje, quando posso comprar meus livros e sentir aquele cheirinho agradável de novo sem tanta preocupação, já não tenho mais a disposição de antes, de sentar-me nas poltronas confortáveis e ficar vendo o tempo passar. Apesar de viajar entre os títulos, passear entre as prateleiras, sou mais prático, pego tudo que posso e me caminho logo ao caixa. Às vezes gostaria de ser novamente apenas um leitor de ficções, de fantasias, daqueles que leem o jornal e não entendem muito bem o que acontece com o mundo. Queria pensar que o final vai ser feliz, ou reunir todos na sala e apontar o culpado (nos livros da Ágatha Christie quase nunca era o mordomo) e continuar com a mesma imaginação de outrora, sonhando a beleza das coisas, a vida bonita das pessoas e os sorrisos nos lábios. Na verdade, gostaria de ler o mundo de uma outra maneira.