ENQUANTO ESPERAVA A BARCA

  Amanheci cantarolando um samba-canção dos anos cinquenta.
  ...Deve ter sido obra do subconsciente tentando ajudar, tentando tirar-me da prolongada fase de "desinspiração" que me afeta há três meses. Tenho escrito, "desescrito", reescrito... e nada! Nada sai de proveitoso desta cachola "setentina".
     
  (...) 
  Mas, bem. 
 ...Amanheci "ouvindo" Ângela Maria cantando o "Vida de bailarina", de Chocolate (Dorival Silva) e Américo Seixas:
                    "Quem descerrar a cortina
                    Da vida da bailarina
                    Há de ver cheio de horror
                    Que no fundo do seu peito
                    Existe um sonho desfeito
                    Ou a desgraça dum amor."
                    (...)

  ... - o que me transportou ao século passado, aos fins dos anos '50, início  dos '60. 
  ...(Acho muito estranho, falar em século passado). 
  (...)
  As greves eram frequentes.
 Trabalhando na capital federal e morando na outra, a provinciana, a estadual, eu saía do serviço depois das dezoito horas, e, muitas vezes, chegando à Praça Quinze, encontrava filas enormes nas estações das barcas.  
  ...Era uma coisa por demais (como se costuma dizer). A uma voz de comando grevista, todo o sistema de transporte da baía paralisava. Sequer uma barca ou lancha funcionava. 
  ...Aí, então, havia de se esperar os "avisos" - pequenos barcos da Marinha, ligeiros, porém, insuficientes para a demanda de passageiros, obrigando os usuários a permanecerem nas filas durante três, quatro horas;  às vezes, mais. Se chovia, piorava. 
  Naqueles dias, para mim era preferível sair da Travessa do Ouvidor e esticar até a Cinelândia, como tantos outros que trabalhavam no centro faziam: para ver um filme, uma peça de teatro, revirar livros nas barracas das feiras na Praça Floriano, ou se distrair nos dancings "Avenida" e "Brasil".          
 ...Assistir óperas ou concertos sinfônicos no Teatro Municipal era sonho difícil de se realizar. Não me recordo de empresas patrocinando espetáculos com gratuidade de ingressos. 
  (...) 
  Duas vezes fui a um dos dancings.
 ...Só duas. Fidelidade à namorada interiorana e dureza salarial não admitiam extravagâncias. (E aqui é melhor esclarecer: fui porque chovia; e porque esperava hora melhor para atravessar a baía).
...Numa delas encorajei-me, dirigi-me ao "guichet" e adquiri a cartela que me dava direito a dançar com as moças. Dançava-se, e a cada música dançada, a cartela era marcada com um furo pelas próprias moças. 
  A concorrência era grande: muitos cavalheiros para poucas damas.
  ...Entre elas, uma, especialmente, chamava a atenção: morena, bonita, vistosa, elegante, vestido de tecido leve e cores alegres, sapatos saltos altos... Era a dançarina mais solicitada, e este fato fez-me esperar e esperar... Se me arriscasse a dançar com outra, eis que a orquestra poderia terminar a música e eu me encontrar do outro lado do salão... aí não chegaria a tempo de tirá-la.  Era extremamente solicitada. 
  ...E também extremamente séria, a mocinha.
 ...Dela, as poucas coisas que fiquei sabendo: chamava-se Mércia e tinha dezesseis anos de idade.  O mais, vinte ou trinta palavras sobre a família carente e seus problemas. 
  (...)
                    "Obrigada pelo ofício
                    A bailar dentro do vício
                    Como um lírio em lamaçal
                    É uma sereia vadia
                    Prepara em noites de orgia
                    O seu drama passional
                    Fingindo sempre que gosta
                    De ficar a noite exposta (...)"

  (...)
  Até hoje me recordo daquela pobre menina: Mércia, dezesseis anos... Mércia! Não acredito que fosse seu nome de guerra, mas o real.
  ...Ao mesmo tempo que a vi atraindo todos os olhares, inclusive os meus, possivelmente só os meus olhos perceberam a sua tristeza escondida. 
  Senti pena e carinho. 
  ...Senti vontade de lhe dar conselhos... 
 ...Mas não tive tempo; as duas músicas que dançamos duraram pouco.
  ...Além do mais, eu! - quem era eu, para aconselhar? - eu, com vinte e um anos...
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  Certo dia, passados talvez outros vinte e um anos, recordei-me daquela noite chuvosa em que fui ao dancing enquanto esperava a barca. De repente, veio-me o desejo de homenagear aquela criatura que naquela noite era a mais atraente de todas as dançarinas. Fiz-lhe um verso em acróstico:
                    Ó tu, que danças, danças: 
                    Menina de tranças
                    É que devias ser! 
                    Rosas, riso...  paraíso!... 
                    Castelos engalanados... (Vade, allegoria!)
                    Infantes por ti apaixonados...     
                    Alegria, enfim, alegria!         
                    (...)
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  E mais que tais versos, não consegui. 
  ...Certamente eu estava, como agora estou, numa prolongada fase de "desinspiração".        
                    
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Jun.19, 2013