A crônica do riso
Sorrir deve ser uma abstração.
Para sorrir, é necessário que nos esqueçamos por um momento. Porque, enquanto você sorri, um andarilho está com os braços estendidos a pedir comida. Um cão abandonado está a cheirar restos deixados nas sarjetas. Um pai de família está a carregar uma carriola pesada, cheia de pedaços de papelão. Um moribundo agoniza na maca de um hospital afastado. Uma mulher é agredida pelo marido alcoólatra. Uma grande extensão de floresta tropical queima, ardendo em chamas. Uma família de retirantes morre de fome e sede. Uma senhora senta sozinha em uma velha cadeira de balanço. Um pássaro fica preso num fio de alta tensão. Uma árvore centenária é cortada para fazer móveis. Crianças se envolvem com o crime. Jovens usam drogas em praças mal iluminadas de São Paulo. Um pequeno coelho é morto para fazer casacos caros. Um porco é abatido, aos gritos, num galpão de um frigorífico. Vacas são transportadas, dentro de caminhões sujos e barulhentos, para um lugar de onde não voltarão. Chineses, na flor da idade, são usados para fazer tênis de exportação. Mães perdem seus filhos em assaltos. Pessoas são atropeladas, sofrem acidentes... E você está confortavelmente sorrindo.
Sorrir deve ser mesmo o ato de abstrair. Se não o fosse, seria impossível sorrir.