EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

Bons tempos que não voltam mais. Às vezes fico pensando: para onde foi parar o tempo? Aquele tempo em que toda a família se reunia no Natal, Ano Novo e Páscoa, desde os nascituros àqueles com o peso maior da vida. Nossa família era bastante numerosa. Nessas ocasiões a festa começava na véspera. A reunião se dava sempre numa casa grande onde se podia montar uma mesa para cerca de sessenta pessoas ou mais. Acontecia de tudo. Na pausa entre uma comilança e outra, existiam jogos de baralho e a famosa tômbola (bingo). Descendentes de italianos, portugueses, espanhóis e romenos formavam nossa unida família. Até que um dia eu sugeri que os comedores de cabrito ficassem todos reunidos numa ponta da mesa.

Falar das iguarias é desnecessário, apenas destacar dois pratos, dos quais, de um eu fugia, mas sempre o colocavam frente a mim na mesa. Esse cabrito era um assado especial. Recheado com arroz feito com miúdos do próprio cabrito. Quando era aberto, exalava um “aroma” tão especial quanto o próprio cabrito vivo, caso estivesse comendo numa horta com salsa, cebolinha, alho e outras ervas aromáticas. Mas os glutões não estavam nem aí e enchiam o prato com o arroz e disputavam uma perna. Era uma cena troglodítica.

O outro prato, bastante comum, indicado até para doentes era a canja de galinha. Ela era de uma galinha inteira e levava de tudo, desde miúdos até os pés, com exceção das penas, unhas, bico e tripas, logicamente. Quando pronta, ficava com uma calota de gordura de uns dois dedos num caldeirão de uns vinte litros. Naturalmente, essa canja nunca seria recomendada para enfermos. Era a primeira a ser servida para abrir o apetite. Havia quem a tomava antes, durante e depois. Durante era para assentamento de camadas e depois era para facilitar a digestão. Exceto esses dois pratos, os demais são memoráveis. O molho do macarrão era tão gostoso que os cachorros lambiam, deixando o macarrão limpinho, branquinho e olhavam para a gente com aquele olhar alegre de quero mais, passando a língua de um lado ao outro do focinho. Memoroso, também, era o pimentão recheado e assado, sempre presente em qualquer almoço festivo. Depois vinham as sobremesas de pudins, frutas secas e naturais e a famosa salada de frutas, adoçada com vinho doce e guaraná. As crianças adoravam-na e também ficavam “altas”, cantavam e riam. Era só alegria!

Fartos almoços desses com cabrito, leitão a pururuca, peru, frango, marreco, ganso, coelho, etc. eram regados com as mais variadas bebidas: caipirinha, ponche, uísque, cerveja e vinho. Era a festa das nações. Depois de tudo isso, vinha a modorra e quase todos (os glutões principalmente) iam para os sofás dar a “cochilada”. Não sei se comparo a uma família de leões após devorar a presa ou a uma grande toca com ursos hibernando. Cada um com seu ronco e seu chulé peculiares. De puns nem é preciso falar, era um recinto exclusivo deles. Eles se aguentavam ou ficavam entorpecidos.

A graça, a beleza e o valor dessas reuniões que trazem nostalgia, eram a satisfação e a alegria de estarem todos juntos. Todos riam aos abraços de chegada e choravam aos abraços de despedida, principalmente no dia da Páscoa, pois a próxima reunião só seria no Natal e Ano Novo. Às vezes alguém “faltava”, mas havia uma ou mais crianças no lugar dela. É a vida. O tão famoso “C’est la vie” do francês.

A festa continuava logo após a comilança e a lavagem das louças. Os moderados e as mulheres já estavam jogando tômbola. Os “ursos”, à medida que iam acordando, juntavam-se ao jogo. Lembro-me bem de uma dessas festas. Eu estava recentemente casado, então, eu e minha esposa, com apenas duas cartelas cada um, ganhamos em todas as rodadas. Quando não era ela, era eu, seja quina (“cinquina” no sotaque da família soava (chincuina) ou cartela cheia (tômbola). Naquele dia acho que desbancaríamos até o cassino de Mônaco. Houve até quem desistiu de jogar porque só perdia. Numa pausa, aquelas para ir “quebrar a jarra”, minha esposa estava atrás de alguém que, sem vê-la, fez o seguinte comentário:

- Pôxa! Hoje o “casal vinte” não perdeu nenhuma! Tá sem graça jogar. Só eles ganham! Ah, vou até desistir.

Outros seguiram o mesmo exemplo. Era nosso dia de sorte e não sabíamos. Não compramos nenhum bilhete de loteria.

O jogo de tômbolas acabou mais cedo naquele dia. Então partimos para o montinho. E nossa sorte não parou. Como tiramos o rei de ouros, poderíamos bancar e foi o que fizemos, pois nosso caixa estava alto e numa rodada sobrou novamente para nós o rei de ouros. Não foi nem preciso ver as cartas dos demais, foi só recolher as fichas com o rodinho. Pena que o valor de cada ficha era uma quantia simbólica.

Com tanta comida, os puns não aconteciam somente no momento do cochilo. Sempre alguém, mais corajoso que os demais, ousava afinar seu trombone ou se fosse covarde liberava uma “lufada” inaudível. O cabrito agora voltava em forma de gás. Não era nem preciso perguntar quem era o autor, pois ele se revelava rindo ao olhar os narizes torcidos e ouvindo as broncas.

E o jogo seguia, fosse tômbola ou montinho até a fome voltar. O único prato quente era a canja que sobrou e talvez alguma macarronada, depois os assados, saladas e frutas. A festa ia chegando ao fim à medida que a noite avançava. Aqueles que moravam um pouco mais longe eram os primeiros a se despedirem. Havia fartura, fossem salgados ou doces. Sempre alguém levava um pedaço de uma torta ou de um assado.

Foram muitas as festas, toda a família levava um prato ou um doce típico da nacionalidade de seus ascendentes. Houve uma festa em que um parente resolveu trazer uma salada de brócolos com ovos de codorna, bastante alho e cebola. Preparou de véspera e colocou na geladeira. Quando o pirex foi aberto, alguém perguntou:

- Quem soltou esse pum?

- Fui eu, disse quem levou o prato.

Era assim, todo mundo brincando com todo mundo. Existiam alguns chatos que faziam piadas fora de hora e sem nexo, mas relevava-se. Infelizmente, esse tempo acabou para a nossa família, mas creio que por uns trinta anos, desde criança, eu tive o prazer de viver esses momentos. Muitos nasceram e muitos se foram. Hoje fica mais fácil pegar o telefone e desejar um Feliz Natal ou passar um e-mail com um anexo de cartão. O abraço e o beijo são virtuais, totalmente sem energia. O almoço é etiquetado num restaurante, somente pais e filhos, sem risos, piadas ou cantorias. Os bons tempos se foram. Hoje, estão lá, jazem, “em algum lugar do passado”.

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 12/06/2013
Código do texto: T4338024
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.