O ASSASSINATO COMETIDO POR VIRGINIA WOOLF

Eu não tenho medo de Virginia Woolf, o que sinto por ela é uma enorme admiração.

O ASSASSINATO COMETIDO POR VIRGINIA WOOLF

Hoje escolhi um assunto que me pudesse tirar do normal dos fatos. O cotidiano consome a minha paciência, sempre fui assim. Tenho imensa facilidade para me cansar rapidamente das coisas em volta e de fatos repetitivos. Quando eles, os fatos, causam-me enjoo, abandono-os imediatamente e abstraio.

Hoje, especialmente, nessa minha abstração, lembro-me de Virginia Woolf, que em 1905 já conseguiu matar um fantasma que lhe aparecia “sorrateiramente”, cujas sombras das asas pousavam sobre a página que ela escrevia. Chamou esse fantasma de Anjo do Lar e afirmou que conseguiu matá-lo, embora considerasse ser “muito mais difícil matar um fantasma do que uma realidade".

Entendamos Virgínia: sua profissão era a literatura com a qual teve contato muito cedo, pois aos vinte anos já era uma crítica literária experiente e pertencia ao grupo de vanguarda intelectual, que reunia artistas e escritores em Londres, o grupo denominado Bloomsbury. Com suas obras, reinventou a narrativa ficcional moderna.

Em janeiro de 1931, foi convidada pela Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres, para fazer palestra sobre sua profissão e sobre as experiências de mulheres profissionais. Disse que tinha como profissão a literatura e que esta era a que menos experiências específicas oferecia às mulheres.

Segundo ela, escrever era uma atividade respeitável e inofensiva, pois não interferia no orçamento familiar. Bastava-lhe uma caneta e um papel. Portanto, o baixo custo fez com que as mulheres escritoras dessem certo. Só por isso. Ela “era uma moça no quarto com uma caneta na mão. Só precisava mover aquela caneta da esquerda para a direita.”

Com o primeiro salário recebido do jornal para o qual escrevia artigos, não comprou pão, tampouco pagou o açougue. Comprou um gato persa. “Existe coisa mais fácil do que escrever artigos e comprar gatos persas com o pagamento?” Por isso, “não mereço muito ser chamada de profissional”. Filha de família abastada, pouco lutou pela subsistência.

Ao escrever uma resenha sobre um romance de escritor famoso, percebeu, imediatamente, que teria que combater um fantasma de uma mulher, a quem deu o nome de O Anjo do Lar. Tal anjo aparecia entre ela e o papel, enquanto escrevia resenhas. Virginia matou-a, por lhe ser extremamente difícil conviver com aquele espectro a atormentá-la.

Assassinou aquela mulher extremamente simpática, encantadora e altruísta, que se sacrificava todos os dias. “Se o almoço era frango, ela ficava com o pé”; se havia ar encanado, era ali que se sentava, para proteção dos outros;” seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria”. Naqueles dias, toda casa tinha seu anjo.

Assim que Virginia pegava a caneta para escrever sobre um romance escrito por um homem, vinha o fantasma a lembrar-lhe que aquela obra fora escrita por alguém do sexo masculino e que ela deveria ser afável e meiga, lisonjeá-lo, enganá-lo e jamais deixá-lo perceber que tinha opinião própria. Enfim, esse fantasma tentou guiar-lhe a caneta.

Diz a escritora que teve como mérito, que considera único, o fato de conseguir esganar aquele fantasma. Agarrou-a pela garganta e, se fosse preciso, no tribunal diria que assassinara por absoluta defesa própria, pois se não a matasse, ela arrancaria o coração de sua escrita ou a induziria à mentira. Fora difícil, mas a matou. A cada momento em que ela pegava a caneta e lhe aparecia o Anjo do Lar, atirava-lhe o tinteiro e impedia-lhe a interferência. Demorou, mas morreu aquele fantasma.

Segundo ela, matar o Anjo do Lar era imprescindível a uma escritora, pois havia de livrar-se da falsidade e, simplesmente, ser ela mesma.

Disse, ainda, que levaria muito tempo para que uma mulher pudesse escrever um livro sem se deparar com um fantasma para matar ou com uma rocha para enfrentar. Se na literatura, que era profissão mais livre que havia, era assim, o que se poderia dizer de outras profissões?

Saio de minhas abstrações e me pergunto se hoje, tantos anos pós-Virginia Woolf, a mulher, em geral, já está livre dos fantasmas que lhe cobram posturas em suas profissões. Pergunto-me também se a profissional das letras realiza o sonho de todo romancista, isto é, o desejo de ser o mais inconsciente possível, induzindo-se a um estado de letargia constante, que consiga escrever em total transe, livre de fantasmas patrulhadores.

Só nós, mulheres, podemos decidir pelas respostas, já que Virginia Woolf e outras antes e depois dela já facilitaram os nossos caminhos.

(Crônica inspirada por artigos que versam sobre vida e obra de grandes mulheres, escritos pela escritora/poetisa sergipana, Tânia Meneses, a quem dedico a essência desta crônica, pela semelhança que há entre elas. )

Fonte:

Texto Profissões para mulheres (postumamente publicado em A morte da mariposa, 1942.

Woolf, Virginia, 1882 – 1941

Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Tradução de Denise Bottmann. _ Porto Alegre, RS: L&PM, 2012. 112 p. (Coleção L&PM Pocket)

Dalva Molina Mansano
Enviado por Dalva Molina Mansano em 12/06/2013
Reeditado em 13/06/2013
Código do texto: T4337687
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